Plantão na madrugada de sexta para sábado. O que acontece?
Atendo ficha.
Atendo ficha.
Atendo ficha.
Maca.
Maca.
Exame.
Cirurgia - apendicectomia.
Ficha.
Ficha.
Maca.
Maca.
Maca.
Acabaram as macas. Pede maca de algum outro setor do hospital.
Chegou a maca mas não tem onde por porque todo o corredor está tomado de macas com pacientes graves.
Se vira!
Um diagnóstico de tumor de pescoço, avançadíssimo. Triste.
Exame.
Maca.
etc
etc
etc.
Faltando 1h-2h para terminar o plantão. O que acontece?
Chega o resgate com carro que capotou - 3 caras, voltando da balada, se estrupiaram.
Chega o resgate com motoqueiro bêbado que caiu da moto.
Chega resgate com velhinho que caiu em casa, a esposa chamou a ambulância, a ambulância estava levando o paciente para o hospital, quando bateu num carro e depois num poste e o velhinho rachou a cabeça no tambor de oxigênio. "Quando tem que acontecer desgraça, não dá pra fugir mesmo..."
Chega a polícia com um homem passando mal.
Chega uma mulher bêbada escandalosa.
Chega outro motoqueiro com a mandíbula quebrada, todo ensanguentado e uma possível alteração de sistema nervoso central. Também bêbado e inconveniente.
Todos chegam ao mesmo tempo. A galera sai da balada bêbada e resolve sair na rua dirigindo pra causar desgraça.
O caos se faz no pronto socorro e saem os médicos, cansadíssimos após uma noite inteira de trabalho, tentando administrar o impossível. Se antes já não tinha maca suficiente nem espaço no corredor, imagina agora.
Pior. Aí os bêbados inconvenientes se juntam num corredor muvuca onde conseguimos colocá-los para esperar Raio X e tomografia e ficam gritando contando um para o outro que a médica enfiou o dedo no "c..." deles. Sim, meus amigos, porque paciente traumatizado ganha toque retal. Não tem jeito. Sofreu acidente de carro, moto, caiu de grande altura etc, precisa ser feito toque - que avalia se tem hemorragia interna e possíveis outras lesões.
Idéia: Eu e meus colegas podíamos fazer uma campanha na televisão para espalhar a notícia de que quando uma pessoa sofre um acidente, tem que ser submetida a toque retal e vai doer pra "caral..."! Quem sabe assim, essa galera pensa duas vezes antes de dirigir bêbada ou de pegar sua linda moto e sair aloprando na cidade...
Resumindo: plantão de sexta pra sábado = inferno na terra. Pagamento de todos os meus pecados e os de minha família inteira por procuração.
E no final, acabei trabalhando 1h a mais do que deveria porque fiquei suturando a cabeça de um dos rapazes que estava no carro que capotou. Dez pontos. Ficaram lindos! Mas eu já tava só o pó.
Sabe qual é o pior de tudo isso?
O pior dos piores é que eu adorei o plantão! Foi um dos melhores que já dei na vida. Trabalhei horrores, estou morrendo de cansada, minhas costas estão doendo, estou desidratada (porque não se bebe água no inferno), não estou com fome só porque ganhei meio pedaço de pizza de um colega, estou gripada piorando a cada minuto... mas tudo valeu a pena.
Valeu o conforto do diagnóstico do senhor com câncer.
Valeu o sorriso da senhorinha que tinha uma pneumonia e conseguiu receber seus remedinhos.
Valeu a maravilhosa sutura que fiz na cabeça no acidentado.
Valeu o elogio que recebi por fazer bem um procedimento.
Valeu a bronca que ganhei do radiologista por preencher a porcaria da burocracia dele em não sei quantas vias errada.
Valeu tudo. Cada paciente. Cada trauma. Cada discussão. Cada dedada. Cada exame. Cada besteira. Todo o aprendizado.
Sou melhor hoje do que era ontem e estou muito feliz por isso.
Mas agora preciso parar com essa melação e ir dormir porque a noite de sábado é outro dia e preciso estar muito bem disposta para ir à festa de formatura de amigos queridíssimos. Dançar muuuuito, gritar muuuuito (se a gripe não levar minha voz), rir muuuuito, beber muuuuito e não dirigir no final da noite, para não ter que ir para o pronto socorro, ganhar toque retal e encher o saco dos coitados dos médicos que estão de plantão.
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