terça-feira, 26 de dezembro de 2006

Cada dia fico mais impressionada com a diferença social...
Todo mundo sabe que existe, todo mundo acha que sabe o que é, mas na realidade acho que muitos poucos têm real noção do que é isso realmente.
Eu não posso afirmar que sei o que é desigualdade. Posso dizer que tenho alguma idéia, provavelmente melhor do que da maioria dos estudantes universitários da Universidade pública onde estudo.

Já tratei desse tema algumas vezes aqui nesse blog e a cada vez que escrevo, percebo o quanto minha visão sobre isso fica mais reforçada.
Eu vivo na fronteira entre uma classe média baixa e a classe alta. Nasci numa família de poucas posses mas meu pai sempre trabalhou muito para conquistar tudo que tem e poder subir os degraus da desigualdade. Na minha infância, morava num apartamento razoável, mas estudava numa escola pobre (nunca vou me esquecer quando eu tinha 09 anos e fui impedida de continuar a estudar num colégio porque meus pais não podiam mais pagar e o diretor se recusou a dar qualquer tipo de ajuda - acho que foi a primeira humilhação da minha vida). Eu tinha amigos que moravam na favela, apesar de ser um lugar meio sujo, eu adorava ir brincar lá porque tinha mais liberdade, as pessoas se expressavam mais, gritavam sem cerimônia e se ajudavam mais também. Era como se todos os vizinhos fossem donos de todas as casas. Todos entravam e saiam livremente uns das casas dos outros. Por outro lado, eu também tinha amigos "burgueses" (meus amigos mais pobres chamavam assim os mais ricos, mas a gente não tinha noção do que essa palavra significava). Famílias que tinham casas lindas, chiques, onde não podia entrar de sapatos (na favela a gente nem precisava usar sapatos! mas nessas casas a gente tinha que chegar de sapato e depois tirar senão a madame fazia cara feia e contava para minha mãe). Lembro de uma amiga minha que tinha um aparelho de CD. Nossa! Eu achava o máximo aquele disquinho pequeno e brilhante. Eu só conhecia ela que tinha e confesso que às vezes eu ia na casa dela só para ouvir música porque ela era meio chata e metida.
Conforme o tempo foi passando, meus amigos mais pobres foram ficando para trás. Aos 12 anos me mudei para um bairro mais rico, onde as casas tem grandes e lindos jardins e a gente nem conhece os vizinhos. Meus únicos amigos eram os da escola, mas eu não ia mais nas casas deles.
Carreguei da infância a imagem de que ser pobre era bem mais divertido. Era muito melhor ser livre, poder andar descalso em qualquer lugar, gritar à vontade, comer com as mãos, conhecer todos os vizinhos e poder ir à casa deles quando eu quisesse. Mas esse meu sentimento era contrastado com a vontade de meu pai de enriquecer, "subir na vida".

Quando entrei na faculdade, foi um choque. Uma universidade pública, o lugar onde conheci pessoas tão ricas como eu jamais pude imaginar que existisse. No começo foi muito difícil para mim. Não conseguia entender como um adolescente de 18 anos que tem um Peugeot, podia estudar numa universidade pública com ambição de ser um cirurgião famoso e tratar as pessoas mais ricas do país e do mundo. A cabeça dessas pessoas para mim, era algo totalmente fora da realidade. Falar de baladas e viagens internacionais como se isso fosse a coisa mais importante do mundo. E, o pior, carregar um discurso de que "temos que ter empatia pelos pacientes pobres, entender que a vida deles é difícil, considerar todas as suas necessidades..."

Necessidades? Como é que um cara alienado como a maioria deles lá são pode tentar entender aqueles que eles chamam de "pobres". Acho louvável a posição do tentar. Mas, na hora do "vamo-ver" fica uma cena que beira o ridículo. Não dá! Simplesmente não dá! Eu, tendo convivido com algumas pessoas "pobres", tendo passado minha infância numa favela, tenho enorme dificuldade de entender essas pessoas... Como alguém que sempre teve tudo na mão, que sempre usou sapato para tirá-los na entrada de casa, que come carpaccio e massas refinadas desde pequeno, pode entender alguma coisa?

Uma vez, eu estava com alguns colegas numa favela onde fazemos atendimento uma vez por semana. Apareceram algumas crianças para conversar com a gente. Elas estavam brincando na rua, com roupas rasgadas, descalças, mexendo com a água suja que corria por ali. Uma das minhas colegas virou para uma das crianças e perguntou por que ela estava descalça, fez um discurso de que ela tinha que usar pelo menos um chinelinho (ela entende que talvez a menina não tenha um tênis, sendo pobre), mas era melhor um calçado fechado e surtou por completo com um dos meninos que estava mexendo com a água porque "você vai pegar uma doença séria, ter que ficar no hospital internado". E as crianças deram risada daquela "tia" esquisita.
Acho realmente louvável a preocupação dessa minha colega, mas me pergunto o quanto isso é realmente válido. Pior ainda, me pergunto quantas vezes não faço coisas parecidas no meu dia-a-dia sem nem conseguir chegar próxima do entendimento da realidade da pessoa que está na minha frente. Sem nem perceber o que está acontecendo.

Nossa! Acabei me desviando do foco que eu queria nesse texto.
Tem um programa no SBT chamado "Casos de Família" onde as pessoas vão para falar de problemas que estão tendo tipo "minha mulher não me deixa sair com meus amigos" ou "meu filho só pensa em balada e não quer trabalhar". Sempre que eu posso, assisto esse programa e todas TODAS as pessoas que já me viram assistindo torceram o nariz dizendo "credo! vc assiste essa porcaria". Dependendo da pessoa nem perco meu tempo tentando explicar, simplesmente digo "Assisto e adoro" e pronto. Mas para outras pessoas... tento dizer que "essa porcaria" é o que, no momento, mais me aproxima do mundo dos pacientes que atendo, é o que melhor me faz entender a convivência deles, a dinâmica da vida de pessoas que recebem R$300,00 por mês para sustentar 8 filhos e conseguem... Eu, vivendo numa redoma de vida bem abastada, convivendo com pessoas que acham que passar fome é aquela dorzinha que sentem quando ficam mais de 5 horas sem comer, também perco a noção do mundo lá fora. Tipo o mito da caverna, sabe?
Mas esse programa me faz sentir um pouco mais próxima da realidade. Entender por exemplo porque uma mulher se submete a um machismo absurdo do tipo ter que servir o marido e fillhos e não poder ter vida própria, amigos. Entender por que uma mãe expulsa uma filha de 12 anos de casa. Entender por que um pai abandona mulher e filhos. As questões são sempre muito mais complexas. Relações são complexas e ninguém é perfeito. Assistindo esse programa eu consigo entender que nunca há a pessoa certa e a pessoa errada. Em geral ambas estão certas e erradas e ambas são vítimas de pressões sociais e emocionais com as quais têm dificuldade de lidar. Quando uma mulher apanha do marido, não adianta dizer para ela "você tem que denunciá-lo" tudo é muito mais complicado do que isso e, depois que você entender um pouco da situação, alguém vai ter que oferecer o mínimo de apoio (essa palavra também tem um significado muito mais amplo do que se imagina, principalmente para o necessitado) para que as coisas aconteçam do jeito que se considera mais correto.

Não existem situação estanque. Não existe bem nem mal. Não existe pessoa boa e pessoa má. Existe sim diferenças, desigualdades, pressões... e, para entender tudo isso, talvez levaria muito mais do que uma vida inteira.