quinta-feira, 21 de outubro de 2010

E... aconteceu.

Quando a gente se forma, o maior medo de todos é pegar um paciente numa emergência e não saber como salvá-lo. Não ter conhecimento, não lembrar, dar branco na hora.

Trabalho no PSF, Atenção Básica. Não atendo emergências. Escolhi trabalhar num lugar onde não houvesse emergência.
Só que... sou médica. Essencialmente médica e devo teoricamente me manter preparada pra alguns tipos de emergências. O problema é que a Medicina é muito vasta, é muita coisa que você TEM QUE saber. Você precisa manter certas coisas frescas na mente e muitas delas só se mantém frescas quando vc dá plantão em PS.
Sem ver, sem entrar em contato com certas coisas... impossível!

Estava eu lá, tranquilamente atendendo minhas gestantes em mais uma quinta-feira de sol.
Entrou alguém perguntando se eu tinha experiência em pediatria e pedindo pra eu ir à sala de emergência do AMA. Não faço a menor idéia de quem me fez esse pedido. Na hora me assustei tanto que agora, tentando reconstituir os fatos, não sei dizer quem foi.

Chegando lá perto, ouvi alguém gritar meu nome no corredor, ignorei e entrei na sala. Afinal, era uma emergência. Quando entrei, havia um bebê. Minúsculo. 1 mês de vida. Tinha uma médica clínica tentando intubar a criança, uma enfermeira fazendo massagem cardíaca e mais umas 6 ou 7 auxiliares de enfermagem em volta da criança. Mandei os excessos se afastarem e tentei tocar a parada com a clínica. Mandei chamar todos os médicos que houvesse ali perto. Ningué sabia direito o que fazer. Ninguém lembrava a dose das medicações pra crianças. Ninguém sabia intubar.
Saí pra procurar meu amigo, que se formou comigo e trabalha comigo. Alguém em quem confio. Me disseram que ele não estava no posto, estava fazendo visita domiciliar. Liguei pra ele e pedi que ele viesse.
Quando estava voltando à sala de emergência. Ouvi novamente alguém gritar meu nome e um braço me puxou no meio do corredor. Desesperada, a paciente pediu pra que eu salvasse o bebê dela. Reconheci no instante em que botei meus olhos nela. Fiz pré-natal dela. Ela fumava enloquecidamente, fumou a gravidez inteira. Em um segundo a imagem de cada uma das consultas dela passou pela minha cabeça num flash.

Entrei na sala novamente e estando todos os outros médicos centrados nas doses e na ressucitação, olhei a criança e reparei diversos sinais de que ela já estava morta há algumas horas. Uma vez na vida estudei os sinais que aparecem pós-mortem e o bebê tinha vários deles muito visíveis. Obviamente não pararíamos a ressucitação até chegar o SAMU para levá-la para o hospital (porque ninguém ali é gabaritado suficiente pra atestar a morte de um bebê de 1 mês assim).
O meu amigo chegou, bateu o olho no bebê e de cara falou o que eu já tinha sacado. Ela estava morta há muitas horas. Ele começou a ajudar na ressucitação e eu resolvi sair pra falar com a mãe.

Encontrei ela gritando enlouquecidamente. Quando ela me viu, me agarrou desesperada, perguntando da filha. Pedi que ela me contasse o que aconteceu - porque as informações de antes do atendimento podem ajudar muito numa parada. Ela contou o que conseguiu e voltei pra sala. Tentei ajudar no que pude e pedi pra chamarem a enfermeira que fez o pré-natal dela junto comigo pra poder dar um suporte à mãe.

Decidimos que alguém teria que ir conversar com a mãe e prepará-la para o pior. Claro que eu seria uma dessas pessoas porque já a conhecia. Foram outros dois médicos comigo.
Contamos a ela, ela ficou mais alterada ainda, pediu pra ver a criança. Levamos. Ela voltou e se desesperdou. Chorou, gritou, desmaiou, gritou mais, xingou Deus...

Nossa!!! Foi uma das experiências mais difíceis da minha vida.
Não existe dor maior no mundo do que perder um filho. Perder a mãe dói, e muito, mas perder um filho... Sempre achei que era mais doloroso. Perder um bebê de 1 mês, com tanta vida pela frente, então... deve ser insuportável.

Lembrando de tudo depois, recapitulando tudo o que aconteceu, fiquei chocada com meu despreparo e dos outros médicos ali. Lembro de algumas cenas de vários livros sendo abertos na sala de emergência pra checar as doses das medicações porque ninguém sabia direito.
Tudo bem: não somos pediatras; não aprendemos direito ressucitação em bebê porque só os pediatras mais experientes fazem isso no hospital-escola (a gente estuda na teoria mas só assiste uma ou duas vezes na prática); não atendemos emergência porque trabalhamos no posto; não salvaríamos a criança porque ela já estava morta há tempos... Mas... mas... será que não é nossa obrigação saber algo desse nível? Será que não deveríamos ter isso claro na nossa mente?
Não temos obrigação de saber de cabeça a dose de um antidepressivo ou de um antibiótico de segunda linha para gestante porque se a gente precisar dessa informação, a gente abre o livro e vê.
Mas numa emergêcia, não dá pra abrir o livro. Cada segundo é precioso e o livro só atrasa. Isso tem que tá na cuca fresca. TEM QUE SABER!

Pior é que desde que me formei, sempre andei com um resuminho de parada cardíaca em crianças. Justamente porque eu tinha medo que isso acontecesse. Porque eu sabia que não ia lembrar. Eu andava, no meu bolso, todo dia, com um papel menor que um gardanapo com todas as doses de todas as drogas na parada.
Joguei esse papel fora faz duas semanas porque em 10 meses de trabalho, nunca precisei, porque afinal, trabalho no posto e não deveria precisar...

No fim das contas, desmarquei todos meus pacientes do dia, peguei minhas coisas e fui embora do posto. Quando estva saindo soube que a médica clínica do AMA, que estava ajudando a salvar o bebê, estava indo embora também e falando que nunca mais ela pisaria naquele lugar. Como pode um lugar daquele com tanta gente despreparada e sem um Pediatra de plantão?