quinta-feira, 12 de maio de 2011

Trash

Tô me sentindo um lixo. Como há muito tempo não sentia.
As pessoas me olham, me ouvem reclamar e falam “não entendo como você pode não dar valor a tudo que tem, você tem um bom emprego, uma carreira, ganha bem, tem um marido maravilhoso, mas só sabe reclamar”. Elas me criticam, me chamam de louca.
Talvez seja isso mesmo. Talvez eu seja simplesmente uma louca, que distorce a realidade.
Sei lá.

Tô cansada desse mundo injusto, de lutar e não ver resultado, de ver as pessoas com seus enormes umbigos simplesmente passando por cima de outras pessoas. Tô cansada de assistir reportagens na tv sobre a grande porcaria que é o ensino no Brasil. Tô exausta de viver num sistema de saúde, tão cruel e injusto, onde as pessoas doentes morrem na fila esperando por um atendimento, um exame, uma cirurgia. Você tem ideia de quantos pacientes passam pela minha mão diariamente e eu sei que o destino dele vai ser cruel sem que exista absolutamente nada que eu possa fazer???

Tem uma senhorinha lá na unidade que a gente descobriu recentemente que ela está com câncer de colo do útero. Está bem feio mas não sabemos o quanto avançado. Mandamo-na para o hospital de referência porque ela estava com uma infecção urinária multirresistente e precisava de internação para tratar EV. Eles a mandaram de volta dizendo que não havia vaga no hospital e que ela teria que acompanhar o tratamento no ambulatório mesmo. Tentamos vagas pra ela em outros lugares e nada. Tentamos tratar a infecção de urina do jeito que deu.
Mas ainda tínhamos um desafio muito maior, conseguir um oncologista e os exames necessários para saber em que estágio seu câncer se encontra.
“- Oncologista com urgência???”. A funcionária da administração quase rolou de rir no chão. “Temos vários pacientes na fila para essa especialidade. Todos são com urgência. Mas não há vagas no sistema há meses. É impossível."
Achei que a funcionária não estava entendendo a gravidade da situação e fui falar com o gerente da unidade, um enfermeiro.
Sabe o que ele respondeu? Exatamente a mesma coisa que a funcionária. Apenas com um adendo: “o máximo que a gente pode fazer é garantir que essa senhora tenha uma morte confortável. Ela já é idosa mesmo.”
Como assim????
Como assim?????
Como assim???????

Primeiro tive vontade de pular no pescoço dele. Depois tive vontade de denunciá-lo para o conselho, sei lá, denunciar de alguma forma um absurdo desses. Mas, refletindo melhor, percebi que não adiantava, porque é o sistema de saúde brasileiro que pensa assim. Não é esse ou aquele enfermeiro.
Imagina só a situação. Existe uma fila de várias pessoas (sei lá quantas são mas pelo menos umas 20, chutando baixo) com suspeita forte ou até mesmo confirmação de câncer, que não conseguem atendimento há MESES.
Como isso pode acontecer? Como pode ser possível???

Essas pessoas vão morrer na fila e ninguém vai fazer nada por elas? Que sistema universal e de equidade é esse? Como a gente pode ficar assistindo as pessoas morrerem sem atendimento e não fazer nada. Como esse gerente consegue dormir à noite? Como eu posso conseguir dormir à noite?
E se fosse sua mãe? Sua avó? Seu irmão? Seu filho?

Eu fico indignada! Eu me sinto de mãos amarradas. Eu me sinto burra, passiva, incompetente por não fazer nada.

Eu me sinto uma hipócrita, que diz lutar por um mundo mais justo, mas fica sentada atrás de sua mesa se lamentando.

E esse é apenas um dos exemplos que vivo.
Um, entre os tantos que vejo e revejo todo santo dia.

Eu me pergunto: por onde começar a lutar? O que fazer pra mudar? Com quem eu posso falar? Onde procurar ajuda?
E as pessoas me respondem: isso não é problema seu, você tem seu salário e paga seu plano de saúde. Se as pessoas quisessem elas mesmas iriam atrás de seus direitos.

Não consigo concordar. Não consigo aceitar. Não consigo conviver com isso tão de perto, sofrer sozinha sem compreensão, não ter ninguém pra lutar comigo... Simplesmente não consigo fingir que não tenho nada a ver com isso.

Acho que na verdade, eu sou mesmo um lixo e por isso me sinto como um. Se não fosse, não estaria aqui simplesmente “desabafando”. Estaria lutando.
Lixo.