sábado, 17 de janeiro de 2009

Excesso de trabalho

Na boa... tentei ser uma boa médica, tentei ter paciência, ouvir, ajudar. Mas simplesmente não dá. É impressionante como as pessoas são egoístas e só pensam em si próprias.
A mulher pitizenta com enxaqueca simplesmente não entende que vai ter que esperar para ser atendida porque tem gente com doença grave na frente dela. Tudo bem, ela está com dor de cabeça insuportável, há não sei quantas horas, passando super mal. Ok. Sei o quanto isso é ruim, sei o quanto ela deve estar se sentindo mal. Mas não posso simplesmente parar de atender o rapaz que acaba de ser atropelado por um caminhão, está com fratura de bacia, com fratura exposta no joelho e pode morrer a qualquer segundo, para atender a mulher com enxaqueca. Não dá pra deixar um morrer porque a outra está com enxaqueca. Mas a mulher, óbvio não entende isso. Porque ela é muito mais importante do que o resto do mundo!
Faça-me o favor...

O pior é que não é só uma mulher. São milhares de pacientes e acompanhantes. Vários por dia me enchem o saco porque o atendimento deles está demorando... Sem contar os outros que me assombram por outros motivos... É o senhorzinho com câncer que veio no PS semana passada, já conseguiu encaminhamento, mas acha um absurdo que só tem consulta daqui duas semanas e volta para ser atendido (nós estamos num pronto socorro, atendemos urgência, gente morrendo daqui a segundos; não tratamos câncer!!!! será que é tão difícil entender???). É a senhorinha que não consegue andar e o acompanhante insiste que os médicos têm que passar o dia todo ajudando-o a movê-la da cadeira pra maca e vice-versa... É o senhorzinho que caiu há 6 dias e só procura o PS agora com dor no pescoço e parestesia (e eu sou obrigada a colocar colar cervical, arrumar uma maca para o cara que chegou andando, fazer tomografia e tratá-lo como traumatizado em risco - após 6 dias do trauma). Palhaçada!!!

Aliás, maca no PS é artigo de luxo. É um campeonato para conseguir uma. Chega tanta gente, tanta gente, tanta gente grave, que as macas acabam (e o espaço no corredor, onde seria o único lugar onde elas caberiam, também). No meio da tarde, simplesmente não tem maca para mais ninguém. A gente tem que se virar para dar alta para os pacientes menos piores, colocar sentado em algum canto os que conseguem sentar... É desumano.
E eu ainda tenho que aguentar uma enfermeira de fora dizendo:
- Preciso de uma maca para o paciente que acabo de trazer na ambulância para ser atendido por vocês.
(a nossa enfermeira) - No momento não há macas, senhora. Vai ter que aguardar.
- Aguardar? Eu sou enfermeira de hospital particular. Como assim, aguardar???
Na hora todo mundo em volta só olhou e deu risada. Não tinha como não dar risada. Só porque a cidadã é de hospital particular ela acha que pode alguma coisa, que tem algum privilégio?
E meu residente comentou: "é que cada segundo que ela fica aqui, é dinheiro do convênio que está sendo consumido" e eu não pude deixar de responder "cada um com seus problemas".
Não dá. Estava há um tempão tentando conseguir uma maca para levar um paciente que sofreu acidente para ser examinado na sala de emergência e não conseguia nem maca quebrada... e chega a enfermeira do tal hospital particular e quer pegar a maca na minha frente só porque acha que o dinheiro fala mais alto. Comigo não é assim que funciona. Quem tá mais grave vai na frente, se estão todos mais ou menos na mesma, vai quem chegou primeiro. Ponto final. Dinheiro nunca entrou e nunca vai entrar nessa conta.

Posso com essas coisas?????
Se já não bastasse a pressão de atender tantos pacientes graves, politraumatizados, câncer com obstrução intestinal (que necessitam cirurgia de urgência)... se já não bastasse ter que me virar sozinha para resolver diversos problemas porque os residentes que estão em seus últimos 15 dias do ano de residência, simplesmente ficam correndo atrás de burocracia e ignoram terminantemente os internos... se já não bastasse ter que trabalhar quase 80h por semana, sem comer direito, sem dormir direito, sem poder ir ao banheiro... ainda tenho que aguentar desaforo de pessoas sem noção.

Acho que todo mundo tem razão quando diz que a medicina de hoje está desumanizada, que os médicos estão cada vez mais descuidados. Trabalhar num consultório, de gravata, com ar condicionado e uma secretária particular, é uma coisa; trabalhar num pronto socorro, num calor dos infernos, sem ninguém para te ajudar e em condições adversas constantes, é outra bem diferente e acaba te tornando menos humano mesmo. E, considerando que para se formar médico, todos passam por pronto socorros e se desumanizam... não tem jeito.
O jeito seria não manter essa desumanidade depois que passar essa fase ruim. É o que vejo algumas pessoas lutando para conseguir fazer e outras mais velhas, conseguindo. É o que espero conseguir...

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