Têm atitudes que a gente aprende muito rápido quando trabalha num pronto socorro.
Mas, pelo que tenho visto nos mais velhos, a gente esquece rápido também porque eles cometem erros primários ao lidar com os pacientes. Eles já passaram pelos mesmos estágios que estou passando agora, mas parece que ao se tornarem residentes, esquecem tudo que aprenderam.
Ao entrar no plantão ontem, às 19h, logo percebi que a noite seria o caos. Os 2 únicos residentes da Neurocirurgia (onde estou passando) ficaram a tarde toda em cirurgia, só sairiam às 21h e havia um milhão de pacientes esperando-os, milhares de casos para rever e resolver...
Quando entrei, já me chamaram direto para a sala de emergência. Um paciente que tinha sido atropelado estava piorando, precisava ir para cirurgia mas todas as salas cirúrgicas estavam ocupadas. Como era extrema urgência, numa atitude heróica e arriscada, resolveram abrir a cabeça do cara ali, no pronto socorro mesmo, em meio ao tumulto e com grande platéia. Demoramos um tempo considerável tentando salvar o rapaz, mas não teve jeito...
Voltamos à correria (até aí já eram umas 21h30) e vário, vários, vários, vários pacientes vieram para cima da minha residente dizendo que estavam lá desde de manhã e ainda não tinham sido atendidos, reclamando, chorando (minha maior função nesse momento era dar cobertura para ela e não deixar que eles se aproximassem para não atrapalhar enquanto ela resolvia os casos mais graves - pacientemente eu explicava que eles seriam vistos, que estava complicado mas que ela estava resolvendo um por um).
Um dos primeiros pacientes que vieram reclamar (na verdade, a mãe dele) era um rapazinho que tinha sofrido um acidente e estava desde às 16h esperando que nós da Neuro avaliássemos a tomografia dele para que ele pudesse ir para casa. A mãe dele estava surtada, gritando no corredor, dizendo que era um absurdo tanta demora. A tragédia nesse momento já estava anunciada.
Fui até o rapaz (meu azar era que a mãe dele tinha saído no momento em que me aproximei - estava apenas o pai) expliquei com toda calma que a residente estava vendo os casos e resolvendo o mais rápido que ela podia, mas que tinha muita gente, que estava muito complicado etc etc etc. Disse que já havíamos avaliado a tomografia dele e que, assim que possível iríamos conversar com eles (poucos minutos antes, eu tinha pegado a ficha dele, avaliado rapidamente o caso e mostrei a tomo para a residente - ela ficou de discutir com o assistente porque provavelmente o menino seria internado - só que ela não tinha olhado para a cara do paciente ainda, nem sabia onde ele estava... eu tinha feito isso).
Algumas vezes nos momentos que se seguiram, a mãe do rapaz tentou parar a residente no corredor, falando, bastante alterada, que ela queria ir embora e levar seu filho... mas em nenhuma das vezes a residente parou para olhar para cara da mulher - ela estava na maior correria e não parou...
O cenário estava montado para que a tragédia acontecesse.
E aconteceu.
Em um momento, fui ao 3º andar pegar uma tomografia e quando voltei havia um clima estranho, a residente estava extremamente nervosa e alterada e o paciente e sua família haviam sumido.
Perguntei o que tinha acontecido mas ninguém sabia explicar direito.
Fui juntando as informações cortadas que recebia e concluí que a mãe, no auge de sua fúria, partiu para cima da residente, tentando obrigar que ela avaliasse seu filho naquele segundo. A residente, correndo, disse que nem sequer sabia quem era o filho da mulher e que tinha um monte de gente para avaliar e que eles teriam que aguardar (se eu tivesse lá, isso não teria acontecido porque eu reconheceria o rapaz). A mãe surtou, tentou bater na residente, xingou todas as gerações dela e mais um pouco, pegou seu filho e foi embora.
Só muito tempo depois, quando eu já tinha voltado, é que a residente descobriu que o rapaz era aquele da tomografia que precisava ser internado...
E mandou que a enfermeira liga-se para a casa do menino para pedir que ele voltasse ao hospital porque precisava ficar em observação.
Qualquer interno que já tenha passado pelo menos uma semana no pronto socorro sabe reconhecer anúncio desse tipo de confusão.
A mulher estava alterada desde o começo, a situação começou mal e não teria como terminar bem a não ser que a residente interfirisse - e ela teve diversas oportunidades.
Eu entendo que ela estava sobrecarregada, que um milhão de pessoas estava em cima dela. Mas se ela tivesse parado 10segundos para olhar para a cara do rapaz, teria evitado todo o estresse da confusão. Se ela tivesse dito à mãe, na hora que esta partiu para cima, que ela já tinha visto o caso e que a tomografia estava alterada, teria sido o suficiente para a mãe abaixar as armas dela, afinal a vida do filho dela estava em risco... e ela entenderia que precisava aguardar e que ele ficaria internado.
Mas, a residente dizer para mãe que ela nem sabia quem era o rapaz... foi o pior erro. Ela realmente não tinha ligado o caso à pessoa... mas isso não se faz. A primeira coisa quando a gente pega um caso é no mínimo olhar para cara do paciente. No momento em que ela me deu a ficha e pediu para que eu pegasse a tomografia (lá no começo da noite) a primeira coisa que fiz foi saber quem era o paciente (e na hora vi que sua mãe era barraqueira). Não demorei nem 10 segundos entre pegar a ficha e achar o paciente porque ele estava simplesmente ao lado do balcão onde atendemos. Ele estava ao nosso lado a noite inteira e a residente foi incapaz de sequer olhar para a cara dele...
Enfim, fiquei chocada com o erro primário que ela cometeu. Ao mesmo tempo, me identifiquei com ela e me vi nessa situação daqui há 2 ou 3 anos. Espero não esquecer desses pequenos mas tão importantes aprendizados que adquirimos no dia-a-dia do PS porque isso faz uma enorme diferença no nosso trabalho.
Só que... existe uma grande chance de eu, assim como a maioria do residentes, esquecer tudo isso... porque no momento em que estamos tão sobrecarregados, sob tamanha pressão, com tantas pessoas tentando puxar nossos braços para reclamar da demora, com tantos problemas e pacientes graves... fica difícil parar para olhar, ouvir... a gente se foca em resolver o que é grave e acaba ignorando os detalhes (e só depois descobrimos que não eram apenas detalhes)...
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