quinta-feira, 26 de março de 2009

Desculpas

Estou chocada com alguns posts que escrevi nesse blog nesses meses que se passaram!
Chocada!
Acho que a situação era bem pior do que eu imaginava...
Desculpe a todos que se sentiram ofendidos, desculpe a todos que tiveram o desprazer de ler tantas linhas nada éticas e muito arrogantes às vezes.
Aceito as críticas dos comentários e dos e-mails.

Aceito, reconheço que errei, peço desculpas e já iniciei o processo de "censura" dos posts em questão.

No momento, estou tentando me recuperar de todas as atrocidades que vi, fiz, sofri. Me enterrei naquele sistema e está um pouco difícil de voltar à superfície.
Mas nada que o tempo, muito cuidado, paciência e perseverança não resolvam.

segunda-feira, 23 de março de 2009

Não foi um sonho

De repente, ao meu lado apareceu uma harpa.
E um tocador de harpa gentilmente acomodando-a sobre a cadeira.
Eu nunca tinha visto uma harpa assim ao vivo, muito menos tão perto de mim.

O som que lembrava Natal se espalhou por todo o Pronto Socorro, deixando queixos caídos, enchendo olhos de lágrimas e acalmando a todos.
Durou cerca de 5 minutos.
Tão pouco que passei a me perguntar se não tinha sido apenas um sonho.
Foi meu último dia lá.
O pior de todos sem dúvida - qualquer dia desses conto por que.

Nunca vou me esquecer do dia em que presenciei uma harpa sendo tocada no meio do Pronto Socorro.

Desespero

Estava conversando com um senhor hoje sobre o treinamento militar.
Ele estava me contando como ele acha absurdo certos treinamentos de certas equipes de profissionais no serviço (não sei como ele conhece detalhes).
Ele me disse: "eles são ensinados a não ser mais humanos, matam com prazer, com um sorriso no rosto... se eu matasse uma pessoa, acho que me desesperaria, enlouqueceria, sei lá, não ia aguentar a sensação... mas esses caras não, eles aprendem a matar com gosto, a viver atrocidades, precisam deixar de serem humanos para cumprir sua profissão, para exercer bem suas funções..."

Enquanto eu o ouvia, pensava em mim, na minha profissão. Sinto que também sou ensinada a não ser mais humana. Não mato. Nem com gosto nem sem. Mas lido com a morte como se fosse banal, diariamente. Cometo atrocidades às vezes e vejo os médicos mais velhos cometendo mais ainda. Como se a saúde fosse um bem material que pode ser comprado, vendido e encontrado em qualquer camelô. Damos encaminhamentos para UBS para pacientes que a gente sabe que não vai receber tratamento nenhum simplesmente porque o sistema não comporta. Não temos o que fazer. Batemos a porta na cara do paciente e passamos para o próximo.

Estou seriamente precisando de um psicólogo.
Acabo de terminar meus estágios de Pronto Socorro e simplesmente não consigo lidar com tudo que aconteceu nesses 3 meses. Estou destruída por dentro, em cacos. Fiz absurdos que nunca imaginei que seria capaz (às vezes por não saber, às vezes por não ter a supervisão adequada, às vezes consciente mas sem outra alternativa).
Ajudei poucos, fui indiferente para muitos (aquela história de dar um sintomático e mandar para casa porque PS não é lugar de fazer diagnóstico), prejudiquei alguns.
E não consigo esquecer. Não consigo evitar de pensar quantas pessoas morreram logo depois de passar pela minha mão. Quantas vezes fui negligente e nem sei? Quantas vezes fui inconsequente?
Não consigo esquecer o rosto do sofrimento do abandono, do desespero, da dor incurável, do medo, as vidas se esvaindo tão perto.
Dói. Uma dor profunda. Que não passa.

Consegui deixar essa minha semana livre. Não vou atender nenhum paciente. Nesse momento, no nível de estresse em que estou, represento um perigo para qualquer um. Isto posto, estou tentando me refazer, colar os caquinhos.
Mas não sei como me recuperar... não sei como lidar com esses fantasmas que me rondam. Me sinto enloquecendo.

segunda-feira, 16 de março de 2009

Fernando Pessoa

"De tudo na vida,
ficaram três coisas:
A certeza de que estamos sempre começando...
A certeza de que precisamos continuar...
A certeza de que seremos interrompidos antes de terminar...

Portanto, devemos:
Fazer da interrupção um caminho novo...
Da queda um passo de dança...
Do medo, uma escada...
Do sonho, uma ponte..."

Ética e "O leitor"

Tenho me questionado muito, muito muito mesmo, sobre a ética e a moral.
É muito difícil trabalhar num PS, como esse da clínica médica em que estou agora, em esquema de guerra, e manter a ética e não praticar nenhuma atitude que nós mesmos consideramos trasgressão moral.

Semana passada conversei com um professor meu sobre certas vivências que tenho tido no PS, disse o quanto estava sensibilizada com as coisas horríveis que presencio lá e como ando sempre no limite entre a ética e a "anti-ética".
Ele me falou que muitas vezes na minha profissão eu estarei nesse limite... e que muitas vezes eu serei obrigada a cruzar a linha, a extrapolar os limites... Mas que, se eu estiver fazendo aquilo por um motivo nobre, se eu tiver argumentos plausíveis, será aceitável.
Isso não quer dizer que eu não vou precisar arcar com as consequências... tudo na vida são escolhas...

Fico me perguntando por que aqueles médicos aceitam trabalhar naquele lugar, naquelas condições precárias... fico meu perguntando se não sou cúmplice desse péssimo serviço, por estar lá também, por fazer também, por burlar o sistema.
Não gostaria que meus pacientes fossem bem atendidos só porque sou boazinha, porque estou de bom humor... Gostaria que eles fossem bem atendidos, independente de mim, porque eles têm direito, porque é nosso dever (meu e de todos os funcionários que lá trabalham). Mas não é assim a realidade.

Hoje, por algum motivo inexplicável, por forças estelares, decidi que iria ao cinema assistir "O Leitor". Tinha apenas uma sessão, à tarde. E eu coloquei na minha cabeça que, independente do que acontecesse hoje, independente de qualquer compromisso, eu conseguiria ir. E fui.
Eu não sabia direito do que se tratava a história, nem sabia por que sismei com esse filme.
Depois que o assisti, entendi.
Ele se encaixa perfeitamente no meu momento atual, nos meus questionamentos.
O filme aborda muitas questões éticas e morais. A fronteira. O limite.

Chorei o filme inteiro. Desabafei.
Me sinto pesada com tantos questionamentos com tantas vivências, com tanto silêncio. Todo mundo assisti a realidade do PS como se aquilo fosse normal.
Não é normal, não é aceitável.
Todos se calam.
E continuam a viver.
E eu choro.

Diagnósticos

Ontem dei meu segundo diagnóstico de AIDS.
O anterior, foi no meu plantão anterior.
É tão estranho... eu fiquei meio assustada.

O primeiro paciente, tinha um quadro geral ruim, principalmente pulmão. Perguntei se ele tinha alguma doença, insisti, insisti. Ele jurou que não. AIDS era a principal hipótese para o quadro dele.
Quando pedi autorização para fazer teste HIV (sim, porque pedimos autorização para todos antes!) ele disse "claro, claro, doutora, pode fazer!". Nem pensou a respeito, nem ficou surpreso, nem ficou assustado. Achei estranho.
E veio positivo.

O segundo, ontem, veio com quadro neurológico, umas lesões feias no cérebro. As hipóteses principais eram metástase de algum tumor bizarro ou neurotoxoplasmose (c/ AIDS).
Quando pedi autorização para fazer o teste HIV, a reação dele foi idêntica à do outro "claro, claro, doutora, pode fazer!".
A esposa dele estava junto e ficou assustadíssima "AIDS??? Como assim??? Você acha que ele pode ter AIDS??? Que que você tá dizendo???". Expliquei que essa não era nossa principal hipótese (porque as lesões na TC pareciam mais meta) mas que tínhamos que descartar para poder tratá-lo direito e tal. Ela ficou mais calma.

Ela teve a reação que eu esperava dos pacientes. Se alguém chegasse pra mim e falasse que precisa fazer um teste HIV porque tenho alguma doença que pode ser AIDS, eu ia ficar assustada, fazer um monte de pergunta... como a mulher fez... mas os dois homens nem quiseram saber por que... parece que eles já sabiam ou desconfiavam fortemente...

Duro é que a doença dos dois já está super avançada. Hoje, ter HIV positivo já não é mais uma desgraça. Nós conseguimos tratar, controlar as doenças oportunistas, conseguimos manter o paciente com vida normal por muuuuitos anos. Mas eles precisam ajudar, tomar os remédios, se cuidar...

É muito mais triste ver um paciente morrendo de AIDS hoje, com todos os tratamentos que temos disponíveis...

terça-feira, 10 de março de 2009

Jogo dos 7 erros (ou mais)

Menina de 16 anos resolveu colocar um piercing na língua, escondido da mãe, claro!
Foi a um estúdio qualquer, colocou, beleza.
3 dias depois, começou a sentir a língua esquesita, não estava conseguindo falar direito, a boca estava meio dura.
A menina, escondida da mãe, tirou o piercing e rezou para que aquilo melhorasse.

Uma semana depois, sim UMA SEMANA, a mãe percebeu que alguma coisa estava errada com a filha. A menina mal saía do quarto, não falava, não comia. Foi pressionar a filha.
A menina simplesmente não conseguia mais abrir a boca. Pelo contrário, só fechava fortemente, com contração muscular máxima.

A mãe correu com a menina para o pronto-socorro. Sim, ela tinha um trismo. Sim, ela está com Tétano.
Agora a menina encontra-se na UTI e deve ficar lá ainda um bom tempo.

Quantas pessoas erraram quantas vezes nessa história?

segunda-feira, 9 de março de 2009

Altos e baixos

Sabe o que é muito legal?
- dar plantão junto com ninguém mais-ninguém menos que o autor de um dos livros mais importantes da área médica
- passar a tarde com o cara na sala de emergência, vendo-o salvar a vida de um paciente com uma patologia super rara que ninguém mais ali conseguiria nem sequer diagnosticar (muito menos tratar)
- passar a tarde ouvindo suas explicações sobre absolutamente todos os assuntos importantes (até aprendi a mexer no aparelho de ventilação mecânica!)
- conseguir intubar na primeira tentativa, com o grande mestre como testemunha
- fazer toraconcentese e ajudar a paciente a conseguir sua tão necessitada consulta
- assistir ao atendimento de um trauma grave, passo a passo, sem erros, na luta a favor da vida

Sabe o que não é nada legal?
- saber que uma amiga está precisando de mim e não conseguir ajudá-la... não conseguir sequer falar com ela pelo telefone...

sexta-feira, 6 de março de 2009

Livros - meus amantes

Definitivamente desisti de ler "Comer, Rezar, Amar". Estava se tornando uma tortura para mim acompanhar essa jornada.
Não acho o livro ruim. Não mesmo. A autora escreve muito bem. Mas simplesmente não é o momento da minha vida para ficar lendo esse "blog". Sim, porque para mim esse livro parece mais um blog, um diário, do que propriamente um livro.

Ela conta sobre sua viagem à Itália, depois à Índia, com detalhes sobre sua vida amorosa, suas dificuldades, sua depressão, seus amigos. E parece tudo "all that again", sem muita novidade, sem nada que impressione.

Em "substituição" comecei a ler "A Sombra do Vento" de Carlos Ruiz Zafón. Estou simplesmente encantada com a escrita dele. Ele brinca com as palavras criando imagens e metáforas inesperadas, lindas.
Sem falar que a história se passa na minha amada Barcelona. Cada descrição de cada parque, rua, casa... ah, queria tanto estar lá!

Ah, inclui um link aí do lado para o blog "Vendo e Ouvindo". Acompanho esse blog já faz um tempo e ele me ajuda a alimentar meu prazer pela leitura e minha curiosidade. O blogueiro disponibiliza livros atuais digitalizados, principalmente os que estão na lista dos mais vendidos da semana, de graça.
Muitas pessoas vão dizer: "isso é pirataria, é um absurdo. O autor do livro deixa de receber enquanto você leva vantagem sobre ele". Tenho dois pontos a comentar sobre isso:
1) Quem leva vantagem sobre o autor são as editoras que repassam uma porcentagem pequena de seus lucros para os verdadeiros merecedores, para aqueles que passaram meses, anos de suas vidas, produzindo o conteúdo dos livros
2) Acho que sites como esse ajudam na divulgação e na venda de livros, não a diminui como muitos acham, além de difundir a cultura e o hábito saudável de ler. Eu, por exemplo, não teria lido nem metade dos livros que li se não fosse a internet. E muitos dos livros que li, divulguei para amigos, que acabaram por comprá-los (porque preferem o papel e têm dinheiro para escolher). Alguns dos livros que li comprei para dar de presente e outros (poucos) comprei para ter em casa porque amei. Se não tivesse lido, usufruindo da chamada "pirataria", provavelmente alguns dos meus amigos, não teriam comprado, eu não teria dado nenhum de presente e talvez teria comprado um ou outro para mim, por curiosidade.
Um outro ponto a se considerar: se essa "pirataria" da internet é considerada prejudicial para os autores e editoras, também deveriam sê-lo as bibliotecas públicas, que emprestam livros gratuitamente para quem quiser, sem reembolsar ninguém.
Considerar difusão de cultura um crime, é retroceder aos tempos Medievais, quando livros eram queimados em praça pública e as pessoas que os liam também.

quarta-feira, 4 de março de 2009

Assombrada

Ontem, durante o plantão, 3 pacientes/acompanhantes diferentes me perguntaram como eu conseguia trabalhar no hospital e comentaram que precisava ser muito forte para suportar uma rotina como aquela.
Minha resposta foi: "a gente acaba acostumando". Mas a resposta de verdade é: "a gente não consegue". A gente não trabalha de verdade, a gente entra em estado de luta, missão de guerra... e vai fazendo as coisas sem pensar com o grande objetivo de mandar o maior número de pacientes embora em menor intervalo de tempo.
O único motivo para eu aceitar fazer isso é saber que só fico 3 meses lá. Depois, nunca mais. Preciso passar por isso para me formar, porque minha faculdade exige. Mas não entendo como aqueles assistentes, que estão lá há anos, aceitam passar parte de suas vidas dedicada a esse lugar infernal.

Passados mais de 2 meses que comecei a trabalhar em pronto socorro, posso dizer que hoje sou uma pessoa pior, uma médica pior, menos ética e menos cuidadosa.
Como já disse aqui outras vezes, acho que me recupero depois e volto a ser não tão ruim... como era antes. Mas cicatrizes vão ficar. Porque fui muito machucada, porque machuquei muita gente.
Só vai restar minha consciência pesada, só vão restar as lembrança desses tempos sombrios em que não convivi com pessoas mas apenas com sombras. Assombrada.