sábado, 31 de maio de 2008

Claaaaaro que deveria estar estudando... Mas não estou. Não abri o livro sequer por um segundo hoje.
Se me sinto culpada?
Claro! Sou pressionada a estudar a cada 5 minutos de folga que tiver, no fim de semana inteiro (quando não estiver de plantão), durante as madrugadas...

Mas não me arrependo. Fazia tempo que não me sentia tão cansada. Precisava de um tempo para mim hoje.

Essa semana morreu uma tia minha. Irmã da minha vó. Eu não tinha muito contato com ela, mas simplesmente me ligaram avisando que eu era a parente mais próximas apta a cuidar da burocracia. Fiquei desesperada.
Ela nunca se casou, não tem filhos, suas duas únicas irmãs vivas estão idosas e doentes. Meu tios moram em outras cidades. Meu pai tinha acabado de pegar um avião para o sul. Meu irmão sumiu.
E eu estava no hospital, com um monte de responsabilidades, com minha paciente com a barriga aberta (não que eu fosse importante para a cirurgia dela, mas eu queria estar lá... eu prometi que estaria...). Entrei em parafusos. Desespero total.
Mas no fim, depois de muito estresse, muitos cabelos arrancados, muitos telefonemas... consegui participar da cirurgia, depois fui liberada e resolvi as coisas (com ajuda de um adulto responsável, claro). Mais foi muito estressante. Momentos de tensão absurda.
É muito difícil virar gente grande.

E tudo acabou com minha vó deprimida, um pouco mais surda que antes (???) e com piora da coréia que ela tem por efeito colateral das medicações que toma. Fico preocupada, mas não sei o que fazer...

Fui para enfermaria hoje de manhã (sábado, sim!). Para minha felicidade (claro que estou sendo irônica) os residentes resolveram trocar de estágio justo antes do fim de semana - todos eles juntos. Estava eu lá, interna perdida, a única que conhecia os casos (conhecia os meus - os outros 8 eu sabia muito mal e porcamente), tentando explicar para os perdidos "more" quem era quem e porque tal prescrição era de tal jeito, tal controle estava assim ou assado, tal dreno estava sem vácuo, tal paciente tinha trocado de leito etc etc etc. Justo eu... (sem falar que deixei todos eles irem embora e esqueci - simplesmente esqueci - de perguntar umas 4 coisas que faltavam... quando lembrei, estava eu sozinha na enfermaria, sem carimbo e sem um cérebro adequado, para resolver os problemas dos pacientes - saí correndo pelo hospital na esperança de encontrar uma boa alma, um bom cérebro com um carimbo que se dispusesse a me ajudar sem me dedurar para os residentes depois).


Cheguei em casa (quase não cheguei porque simplesmente morri ao entrar no ônibus e quase perdi o ponto), caí na cama e só acordei às 18h, com o telefone tocando. Fiquei assistindo tv, lendo meu livro, conversando com minha vó...

E depois entrei no orkut e fiquei fuçando algumas comunidades de colégios onde estudei e pessoas que conheci há muitos anos.
É incrível como as coisas mudam, né?!
Quando era pequena, do maternal à 4ª série estudei num colégio muito bom (na época), mas muito caro. Saí de lá porque meus pais não podiam mais pagar. Mas antes de sair, minha mãe foi conversar com o diretor para pedir uma bolsa de estudos para nós. Afinal, eu era uma aluna razoável, nunca dei problemas para o colégio (não se pode dizer o mesmo do meu irmão, mas enfim)... O diretor recusou a bolsa, dando a entender que não éramos alunos em quem valia a pena investir.
Minha mãe ficou muito chateada na época. Eu, apesar de criança, fiquei com muita raiva e, de certa forma, entendi aquilo como um "você não é e nunca será boa o suficiente".
Fui para um outro colégio. Periferia total. Mas muito mais educativo. Fui bem recebida e bem tratada. Tenho amigos de lá até hoje.
No colegial, fui fazer técnico em outro colégio. Mais central, mais desorganizado, menos educador. Eu era a melhor amiga da melhor aluna da época. Ela até ganhou uma medalha de ouro no final do 1º colegial por ser tão boa e dar tanto orgulho para o colégio. E eu, na mesma cerimônia, ganhei uma caneta branca (daquelas que vendem em camelô, sabe?), só para não ficar chato. Afinal, nós duas estávamos sempre juntas, fazíamos trabalho juntas, o projeto que fez sucesso na época foi liderado por nós duas. Mas ela era mais talentosa, mais inteligente, mais simpática, mais popular. E eu, uma sombra...

Olhando para tudo isso hoje, me orgulho de mim, de até onde consegui chegar. Eu tinha potencial para ser apenas uma pessoa comum de classe média baixa, com um currículo mediano (faculdade particular sem vestibular, curso medíocre, trabalho braçal, emprego-desemprego para o resto da vida).
Mas venci.
Vou me formar médica o ano que vem, em uma das melhores faculdades do país, seguir uma carreira boa, sem nunca ficar desempregada, sem ter que me submeter a entrevistas humilhantes de empregos e chefes abusivos.
Sem ter me formado ainda, tenho um ótimo currículo, alguns trabalhos internacionais publicados, participações em congressos, organizações de eventos nacionais...

E os outros do passado, como estão hoje?
O colégio que me recusou como bolsistas é atualmente um dos piores da região, mas continua cobrando caro. Poucos alunos que se formam lá fazem faculdade de qualidade, a maioria cai na vida para se virar. A melhor aluna da minha sala naquela época (para quem nunca recusariam uma bolsa) virou crente, casou com um pastor e vive disso.
Aquela minha amiga que ganhou a medalha, considerou-se boa demais para ficar estudando para prestar vestibular, teve muitos problemas sérios na vida, ainda não conseguiu se formar numa faculdade meia-boca onde conseguiu entrar e está prestes a se casar com um traste com o qual ela namora há 5 anos (ele não estuda, não trabalha, vive de "bico" e dependente dela). Até hoje é minha amiga e sempre que me vê ela diz "falo todos os dias para minha irmã menor se espelhar em você e nunca em mim... se eu pudesse voltar no tempo seguiria seus conselhos, seu exemplo... como fui burra".

O mundo dá volta.
Nada como a força de vontade, a superação, a perseverança para nos ajudar a crescer, a melhorar, a provar para nós mesmos que não somos tão ruins como os outros tentam fazer a gente acreditar.

terça-feira, 27 de maio de 2008

Dúvidas que podem mudar uma vida... ou várias...

Entrei na cirurgia da minha paciente hoje de manhã. Quando cheguei, já tinha começado. Ela estava lá com a barriga aberta e os cirurgiões tentando decidir o que fariam com alguns achados inesperados.
Pensei muito nessa paciente nesses dias. Ela é uma senhorinha de 80 anos, com algumas comorbidades meio sérias mas com uma doença que seria de fácil correção. Ela estava muito em dúvida se deveria operar ou não, ficou com medo de morrer (claro! todo mundo que vai ser submetido a uma cirurgia tem medo), medo de piorar sua vida após, de ter uma recuperação muito difícil.

Um dia vinha um cirurgião e dizia pra ela que ela precisava operar, que o risco de ela ficar com aquela doença e ter complicações sérias e ter que operar de emergência era alto, que seria pior se ela não operasse.
Outro dia vinha outro e dizia que o risco da cirurgia era muito maior, que ela passaria muito tempo na UTI depois, que era melhor ela ir pra casa.
E depois aparecia um outro e sugeria que ela fosse pra casa pensar, conversasse com os médicos dela e depois voltasse se decidisse operar. Que a escolha era dela.
Cada dia vinha um e falava uma coisa diferente... Isso quando não vinham os 3 nos mesmo dia (um de cada vez, claro) e falavam essas coisas incoerentes, deixando a cabeça da mulher girando...

No meio dessa confusão, eu, simples interna, que a acompanhava diariamente, explicava o melhor que eu sabia sobre a cirurgia, os riscos e a recuperação, estimulava ela a conversar com médicos que a conheciam a mais tempo, que já a acompanhava antes, mas ficava em cima do muro quando ela perguntava minha opinião pessoal (eu achava que ela devia operar sim, mas claro que não iria dizer isso porque tenho ínfimos conhecimentos para dar uma opinião tão importante na vida, ou morte, de alguém - mas acho que no fundo, ela acabava percebendo o que eu pensava a respeito).

Enfim, ela decidiu fazer a cirurgia, acreditando (ela, eu e os médicos) que seria o melhor para ela. Mas... mas... mas ao entrar em campo hoje, ao ver a barriga dela aberta, tudo que a gente encontrou lá dentro e tudo que tivemos que fazer... Me arrependi amargamente da minha opinião. Não conseguia esquecer a cara dela de medo do dia anterior... não conseguia parar de pensar em como seria a recuperação dela (com certeza muito pior do que imaginei). Foi muito duro.
Acho que ela vai sair dessa. Vai demorar um pouco para se recuperar mas vai conseguir. Mas fico pensando... será mesmo que ela deveria ter operado? Como eu podia ter uma opinião formada sobre isso antes? Como a gente pode interferir tanto? Como a gente pode causar tal mudança na vida de uma pessoa? Tal risco? Como a gente pode brincar de Deus desse jeito, decidindo o que é pior ou melhor, o que é mais ou menos arriscado?

O pior é que acho que os cirurgiões não tem muita noção do tamanho disso. Acho que no dia-a-dia do trabalho (que é muito duro, muito estressante, muito cansativo) eles se esquecem do quanto estão interferindo na vida da pessoa (pelo menos, os cirurgiões mais novos, com os quais tenho contato). Preocupante...

Paralelamente a todas essas emoções de hoje, voltei a pensar na possibilidade de fazer cirurgia. Meu maior argumento para não fazer, além de ter essa responsabilidade gigantesca nas mãos, é porque acho que essa especialidade vai despertar o que de pior há em mim (meu lado egocêntrica, que quer aparecer, maldosa com os mais novos/"fracos", brincar de Deus - características que eu sei que existem em mim e com as quais tento lidar para ser uma pessoa boa). Além disso, penso na vida que os cirurgiões levam que de qualidade (tempo, família) não tem nada...
Mas comecei a pensar que posso lutar contra essas coisas, principalmente contra esses sentimentos ruins. Olha só: eu poderia ser cirurgiã pediátrica (porque a pediatria corre no meu sangue e não há como negar isso), trabalhar duro para melhorar o serviço do hospital (que atualmente é administrado por um troglodita horroroso). Poderia mudar o que tem de ruim, passar a fazer maior contato entre a clínica e a cirurgia na pediatria, tentar melhorar o ambiente de lá, a graduação... nossa! muitas coisas para fazer, mudar, reconstruir... Muitas idéias.

Mas para isso eu teria que fortalecer muito minha personalidade insegura, teria que melhorar minha forma de me relacionar com as pessoas, criar um bloqueio para receber patadas sem me importar etc etc etc. Não sei se consigo...

Tem uma residente de primeiro ano lá na faculdade que me inspira horrores. A conheci no pronto socorro, no meio de uma emergência grave... mulher alta, linda, cabelos perfeitos, toda maquiada, salto alto, roupa impecável. Ok ok. Bastante inadequada para uma sala de emergência. Mas ela era demais. Sabia muuuuito, tocou tudo com uma perfeição inacreditável para uma R1, discutiu com os homens mais velhos quando tentaram tomar uma conduta com a qual ela não concordava. Show!!! A mulher simplesmente brilha.
E é cirurgiã. Alegre. Espontânea. Meio infantil. Inadequada. Mas totalmente segura de si. Totalmente brilhante!
Teve uma hora, discutinho um caso, que ela falou para o chefe que tal coisa tinha 10 cm. Ele discordou totalmente. Disse que tinha uns 20cm. E ela: "imagina! claro que não! é 10cm. 10cm igual a minha régua dos ursinhos carinhosos!!!". Esse argumento ele nem tinha como contestar. A discussão acabou por aí e ele aceitou que tinha 10cm.

Será que consigo?
Será que minha paciente vai conseguir?

terça-feira, 13 de maio de 2008

Ontem. Professor entregando as provas corrigidas.
Foi entregando, entregando, entregando. Eu estava triste. Sabia que tinha sido uma das piores notas e estava triste por não ser tão boa quanto meus colegas.
De repente, depois de ter entregue mais da metade (a minha ainda não), ele parou e falou: "as provas que eu entregar daqui para frente são das pessoas que estão de parabéns, que foram muito bem".
Quase caí da cadeira quando descobri que eu estava nesse bolo, entre os 5 melhores. Inacreditável!!
Achei que ele tinha cometido algum erro e colocado a minha lá por engando, mas não. Eu tinha ido bem mesmo.
Fiquei mais feliz ainda quando vi que a maior nota tinha sido daquele meu colega de panela que "tocou" a reanimação da parada cardíaca da semana passada. O cara é bom na teoria, é bom em momentos de estresse, atende paciente no ambulatório como ninguém... fiquei realmente impressionada e admirada com ele. Mais ainda porque durante a faculdade, ele nunca foi grande coisa. Ele nunca esteve entre os melhores alunos nem nada. Nunca chamou a atenção de nenhum professor para seu talento. E não é que o rapaz tem muuuuito talento?!
Por outro lado, dois dos meus colegas que sempre foram os melhores alunos da sala, que se acham super inteligentes, que semprem respondem tudo na lata, que vivem sendo elogiados pelos professores... tiraram notas baixa e são péssimos médicos, péssimos em conversar com pacientes, em explicar, em entender. Simplesmente péssimos.

Me animei com esse acontecimento e com a obviedade da minha insegurança novamente e fui ontem à reunião de Cuidados Paliativos. Eu tinha parado de ir porque o professor andava me cobrando muito, dizendo que eu era muito calada, que eu não podia ser assim etc etc etc. Não sei qual o problema dele. Eu não atrapalho. Estou simplesmente lá ouvindo e anotando. Não quero participar e ponto. Ele não tem que ficar me enchendo o saco... Enfim, ontem fui novamente. E qual não foi minha supresa quando percebi o quanto de meu aprendizado de lá foi para o ralo nessas semanas em que estive afastada. Nos estágios do internato é tudo muito burocrático, muito rápido. Não dá muito para ficar discutindo filosofia (muito menos na cirurgia que é tudo "corta e arranca fora"). Mas eu não consigo tratar de pacientes sem saber quem são, o que pensam, o que querem, o que precisam. Eu até faço isso - simplesmente discuto superficial e trato - porque me exigem muito. Mas não gosto e faço muito mal feito.
Mas voltando ao ambiente bio-psico-social dos cuidados paliativos, reaprendi novos métodos de conhecer o paciente, abordar questões difíceis como a finitude da vida, religião... Me lembrei o que é ser médico por inteiro. Resgatei uma parte de mim, tão importante, mas que estava adormecida.
Vai me ajudar nas minhas tentativas de mudanças, no reforço da minha segurança, no meu trato do dia-a-dia.

Lá na Liga, encontrei meu ex, que eu não via há algum tempo. Conversamos pouco, mas o suficiente para matar um pouquinho da saudade. E me lembrei de uma conversa que tive com minha madrinha no domingo.
Estávamos conversando sobre homens e tive um "insight". Me toquei do porque afasto os homens. Vivo perguntando para as pessoas o que tem de errado em mim. Sou uma mulher bonita, inteligente, não tão chata assim, mas sempre afasto os homens que se aproximam minimamente, sem perceber como. E nunguém nunca conseguiu me responder por que eles fogem.
Acho que descobri um dos motivos: eu os sobrecarrego. Minha madrinha disse: "eles aguentam mulher feia, louca, chata, ciumenta... mas mulher angustiada, mulher sofrida, ninguém aguenta". Problemas profundos, "dor da alma" não dá para jogar só numa pessoa. Em ninguém. Por que ninguém aguenta tanta pressão, tanta angústia, tanto sofrimento. Não é tristeza, nem depressão. É algo mais fundo, mais duro, menos constante, menos patológico.
E eu faço isso. Sempre. Desde o começo dos meus relacionamentos. Falo muito sobre mim, sobre minha mãe, sobre minhas dificuldades com a Medicina, os sofrimentos com os pacientes, com minha família... e eles não aguentam e fogem antes de se meterem nessa encrenca.
Faz muito sentido. Preciso é de um terapeuta a pagar. Não um namorado/amigo-terapeuta.

sábado, 10 de maio de 2008

"A couple of hundred years ago, Benjamin Franklin shared with the world the secret of his success. “Never leave that till tomorrow”, he said, “Which you could do today.” This is the man who discovered electricity. You’d think more of us would listen to what he had to say. I don’t know why we put things off, but if I had to guess, I’d say it had a lot to do with fear. Fear of failure. Fear of pain. Fear of rejection. Sometimes the fear is just of making a decision, because what if you’re wrong? What if you make a mistake you can’t undo? Whatever it is we're afraid of, one thing holds true: that by the time the pain of not doing the thing gets worse than the fear of doing it. It can feel like we're carrying around a giant tumor. And you thought I was speaking metaphorically.
[...]
The early bird catches the worm; a stitch in time saves nine. He who hesitates is lost. We can't pretend we haven't been told. We've all heard the proverbs, heard the philosophers, heard our grandparents warning us about wasted time, heard the damn poets urging us to ‘seize the day'. Still sometimes we have to see for ourselves. We have to make our own mistakes. We have to learn our own lessons. We have to sweep today's possibility under tomorrow's rug until we can't anymore, until we finally understand for ourselves like Benjamin Franklin meant. That knowing is better than wondering, that waking is better than sleeping. And that even the biggest failure, even the worst most intractable mistake beats the hell out of never trying."
(GA S1E06)
Perdi um paciente hoje. Ele morreu nas minhas mãos. Literalmente.

Cheguei à enfermaria hoje cedo. Hoje sábado.
Não havia nenhum residente, nenhum médico, apenas as enfermeiras, eu e meu colega de panela.
Assim que entramos, a enfermeira nos chamou e disse que a paciente que veio da UTI ontem estava dispineica, que precisávamos avaliá-la logo porque ela não estava bem. Entramos no quarto, começamos a examiná-la e a enfermeira começou a gritar do corredor: "Doutores, doutores, ajuda aqui."
Saimos correndo, cena de filme mesmo.
Entramos no quarto de outro paciente, ele estava em parada. A enfermeira nos contou que ele estava em pé minutos antes, disse que não estava se sentindo bem, mas estava andando. Ela olhou para ele e viu que estava cianótico, pediu que ele se deitasse e alguns segundos depois ele estava vomitando, desacordado.
Chegamos nesse momento.

Eu simplesmente fiquei em choque, assustada, sem saber o que fazer. Tipo a Meredith no 1º episódio de Grey's. Meu colega, mais esperto e com mais experiência começou a fazer massagem cardíaca. Ele sabia o que fazer, já tinha visto e vivido situações semelhantes e simulações - ele fez curso de suporte avançado e já deu diversos plantões no PS da cirurgia durante a faculdade - simplesmente porque ele gosta dessas coisas de salvar vidas em situações de emergência).
Eu, com espírito de pediatra/puericultura, sempre fugi de coisas assim. Não gosto, não funciono.
Mas sou quase médica. Tenho que saber. E sei. Na teoria.

Quando ele começou a massagem cardíaca e passou a liderar a "equipe", eu acordei do meu choque e passei a ajudá-lo. Ambuzando, revezando na massagem, pedindo as drogas (que só poderíamos ministrar quando chegasse um médico formado).
Um residente apareceu, mandou aplicar as drogas que já estavam à mão, continuou a monitorização e depois ficou lá assistindo eu e meu colega tocando a parada, tentando salvar a vida do senhorzinho. Chegou um outro residente, os dois começaram a conversar sobre plantões e tal... e nós lá ambuzando fazendo massagem...
Foda. Foda. Foda.

Passados 40 minutos, não tinha mais o que fazer. Paramos e o senhorzinho se foi.
Sem nem ter tido tempo de respirar, corri para ver a senhora que estava com falta de ar. Eu não sabia o que fazer. Examinei, achei que podia ser edema pulmonar, mas chamei o residente para avaliar sem uma sugestão de conduta. Meu cérebro mal funcionava.
Poucos minutos depois, minha paciente me vendo no corredor (eu estava esperando o residente terminar a avaliação da outra para podermos discutir) veio perguntar se eu tinha novidades para ela. Eu, na maior inocência, disse que ainda não tínhamos visto o resultado de exame que ela fez porque no dia anterior ficamos o dia todo em cirurgia (saímos era 19h30 e fui direto para casa). Pra quê??? Como sou idiota!!!
Na hora, ela fez aquela cara de "essa criancinha vestida de médica é uma inútil mesmo" virou para mim e disse que ela já tinha visto o resultado de exame e que os médicos tinham dito que estava alterado sim. O que ela queria saber é o que eles iam fazer com ela. Eu tentei me desculpar, expliquei que eu tinha ficado em cirurgia e não sabia disso e que eu iria conversar com a residente em seguida.
Merda gigante. Essa cena aconteceu na frente de 4 outros pacientes que passaram a me tratar como criança.
Nessa altura do campeonato, já eram uma 8h30 (eu tinha chegado lá às 6h30), não tinha evoluído nenhum paciente nem prescrito (em geral tudo deve estar pronto até às 8h). Saí correndo, fui vendo os paciente, prescrevendo, resolvendo os pepinos. E, para continuar bem esse maravilhoso dia, a maioria dos pacientes tinha uma queixa nova importante (um tinha tido uma dor torácica de forte intensidade à noite, outro tinha começado a desenvolver uma lesão sacral que parecia uma escara, outro com falta de ar, a outra com dor abdominal e parada de eliminação de flatos...). Caraca! Eu nunca imaginei que ia passar por algo assim.

Os médicos mais velhos chegaram (nem vi quando porque estava tão ocupada)... discutimos os casos, passei os problemas... até que um deles virou e disse "ouvi dizer que você tocou uma parada hoje... você tá bem?". Ele pôs a mão no meu ombro, me olhou e respondi "não, não estou". Ele simplesmente virou e mudou de assunto. Disse que era assim mesmo e me mandou ir até a recuperação pós anestésica avaliar um paciente que não tinha voltado ontem após a cirurgia (aquele que ficamos até às 19h30).
Depois disso ainda fiz um milhão de coisas, vi exames, colhi, mudei prescrições, tomei broncas, respondi a um interrogatório de conhecimento (óbvio que eu errei 90%).
Umas 12h, eu louca para ir embora (num fim de semana normal a gente costuma sair umas 9h-10h), a residente me pediu ajuda para um procedimento. Fui lá, ajudei, demorou horrores. Quando terminou, todos saíram da sala de procedimentos e eu fiquei responsável por levar a paciente de volta para o quarto. Porém, ela estava nauseada e pediu que eu esperasse até ela melhorar um pouco. Enquanto isso, ela pediu que eu fosse até o quarto dela e retirasse seu almoço se ele já tivesse chegado porque ela não queria sentir o cheiro, se sentisse vomitaria. Fui lá, pedi para a enfermeira tirar a bandeja e, quando estava voltando para buscar a paciente, alguém veio me pedir ajuda para alguma coisa simples. Fui, ajudei e... simplesmente esqueci que tinha deixado a paciente na sala de procedimento. Esqueci.
Perguntei para a residente se eu podia ir embora porque ainda ia viajar em seguida, ela disse que já estava tudo mais ou menos encaminhado e que ela terminaria sem problemas. Fui lembrar da paciente quando estava no ônibus, quase chegando ao meu destino. Imperdoável. Vergonhoso. Certamente alguém passaria por lá e veria ela (fica num lugar exposto onde sempre passa gente). Mas eu era a responsável, eu tinha que ter voltado lá, não podia ter esquecido.

Enfim. Foi tudo horrível hoje.
Não posso dizer que não aprendi. Aprendi muito. Pra vida inteira.
Mas foi péssimo. Estou me sentindo um lixo, podre, estragada. Uma péssima aluna, uma médica desprezível, uma profissional medíocre. Vendo como meu colega atende os pacientes dele e todo seu interesse e conhecimento, me sinto pior ainda. Como posso querer ser médica se não tenho capacidade intelectual, nem manual e muito menos equilíbrio emocional para um dia desses??? Como pude escolher essa profissão e como sobrevivo a tanta pressão, cobrança, frustração, incapacidade???

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Hoje tive discussão de Bioética. Discussão orientada depois de uma reunião inesperada que também tratou do assunto. Assunto esse tão renegado, evitado, excluído...

Sempre que tenho essas discussões (pelo menos 1x por mês por determinação da Graduação), minha cabeça vai a mil. Ao mesmo tempo que me angustia falar nesses assuntos pesados, me alivia por saber que posso falar em algum lugar (ou pelo menos ouvir como geralmente faço - por opção, por falta de vivência).

Discutimos alguns casos de pacientes graves que não sabem do diagnóstico, o que fazer quando a família pede para não contar, o que fazer quando você tenta contar e o paciente não quer entender, ou mesmo quando o médico não quer contar ou pede para que escondamos ou, pior, para que a gente minta (nós, como internos, seguimos ordens - na medida do aceitável, claro - mentir para o paciente é algo que eu não aceitaria fazer).
O médico mais velho estava nos contando de experiências que ele teve com pacientes que estavam para morrerm e a dificuldade de lidar com o diagnóstico, mas a dificuldade maior de lidar com as dúvidas, angústias e medos do paciente e da família.
Falamos sobre um caso atual de uma paciente de um colega meu que não sabia que tinha câncer. Ela não sabia, os médicos não esclareceram, a família não tinha muita noção do que estava acontecendo e meu colega, interno como eu, novinho em folha, perdido... não sabia o que fazer.
A orientação desse professor mais velho foi: siga a instrução do serviço. Se você quer contar e os médicos assistentes do lugar onde o paciente está te autorizam a contar, você conta, conversa, tenta tirar as dúvidas. Mas, se os assistentes te orientam a não contar, ou não dão muita atenção, é melhor não se meter.
Fiquei pensando: mas o paciente tem o direito de saber o que está acontecendo com ele, nossa obrigação como médicos é contar. E o professor respondeu, sem que eu perguntasse: nós somos internos, a gente passa 10 dias, no máximo 1 mês, em cada serviço. Já pensou se meu colega vai lá e conta para a paciente que ela tem um câncer. Por mais que ele explique, tire as dúvidas dela no momento, no dia seguinte, quando outras dúvidas aparecerem, quando ela tiver feito um exame que veio uma coisa esquisita e ela não entendeu, quando a filha dela quiser conversar com o médico para saber melhor... meu colega já não vai mais estar lá. Se os assistentes não estão dispostos a fazer esse papel, a paciente vai ficar lá com suas dúvidas, isolada, angustiada, sem ter o que fazer. E meu colega, com sua consciência tranquila por ter cumprido sua obrigação, vai estar em outro andar do hospital, atendendo outro paciente sem sequer imaginar o que está acontecendo com o anterior. Se sairmos por aí, nós como internos rotativos, contando para todos os pacientes seus diagnósticos, poderemos estar causando mal àquelas pessoas. Poderemos, com a melhor das boas intenções, estar prejudicando aquele paciente, os familiares e até os médicos do serviço. Nós não temos condição de acompanhar o paciente, portanto, não temos condição de fazer algo de tamanha responsabilidade como contar um diagnóstico.
O melhor a se fazer nesses casos, é conversar com os médicos responsáveis pelo caso, explicar que o paciente não sabe, o que ele quer saber e tentar convencê-lo de contar, estando a gente junto ou não. Mas garantir que aquele paciente vai ter um suporte depois quando passar o choque e vierem todas as outras dúvidas e angústias.

Uma outra coisa que falamos e sobre a qual eu poucas vezes tinha pensado, é sobre a importância da esperança. O professor contou um caso de um tio dele que tinha câncer. Ele, médico, o levou no melhor especialista que ele conhecia, fizeram todos os exames e concluíram que não poderia ser curado, que só poderiam fazer tratamento paliativo e dar assistência ao paciente na evolução da doença. A tia desse meu professor, esposa do paciente, desesperada, resolveu que ia pedir outras opiniões. Consultou alguns médicos que disseram a mesma coisa. Até que um dia ela encontrou um que falou que poderia curá-lo. O charlatão disse que faria uma cirurgia para tirar o tumor e que o paciente ainda ia viver muitos anos.
Charlatão mesmo.
O tal fez a cirurgia, cobrou rios de dinheiro e, no final, disse que a doença tinha afetado o outro lado do cérebro e não dava para abrir de novo etc etc etc.
A viúva pobre, ao contar o caso anos depois disse que se pudesse voltar no tempo, faria tudo de novo, igualzinho, e daria todo dinheiro dela para o tal charlatão de novo, mesmo sabendo que ele é charlatão. Por quê???
Porque ele foi o único médico que lhes deu esperança. O paciente morreu do mesmo jeito, em pouco tempo, mas morreu sabendo que lutou tudo que podia, morreu com esperança.
Não estou dizendo que enganar paciente é bom. De maneira nenhuma. Acho que um charlatão desse deve ir preso! Mas acho que essa história nos deve ensinar a, mesmo dando notícia de uma doença terminal, nunca acabar com a esperança do paciente. Nunca dizer "o senhor vai morrer daqui a 2 meses". A gente não tem como prever isso. As estatísticas mostram que os pacientes com a doença tal vivem em média 2 meses. E daí? Estatísticas não servem para nada quando se trata de individualidade, de uma pessoa. Aquele paciente pode tanto morrer dali a 2 horas atropelado por uma moto quanto viver 2 anos. Não dá pra prever.

Moral da história (só como registro para o dia em que eu for uma má médica, poder reler isso e repensar minhas atitudes): não se preocupar só com a notícia, com a informação a ser passada para o paciente, mas também com suas angústias, medos, expecativas que vão vir depois; saber que tipo de ajuda o paciente quer, o que ele espera da vida dele dali para frente e o que ele espera de nós; nunca acabar com a esperança (ela é algo de mais precioso que um paciente tem); nunca determinar o tempo de vida - só Deus sabe.

sexta-feira, 2 de maio de 2008

"The game, they say a person either has what it takes to play, or they don't. My mother was one of the greats. Me on the other hand, I'm kind of screwed.
[...]
I can't think of a single reason why I should be a surgeon, but I can think of a thousand reasons why I should quit. They make it hard on purpose. There are lives in our hands. There comes a moment when it's more than just a game, and you either take that step forward or turn around and walk away. I could quit but here's the thing, I love the playing field."
(Grey's Anatomy 01x01)

É incrível como sentimentos podem ser retratados tão fielmente numa série de tv. Isso é arte!
I'm kind of screwed too. Eu me sinto assim constantemente. Eu também não consigo pensar numa única razão pela qual eu deveria ser médica, que não exista em outras profissões. E consigo pensar em centenas de razões para desistir...
Hoje recomecei a assistir Grey's. Tenho todas as temporadas guardadas em casa porque sabia que um dia (ou várias vezes) eu iria ver novamente e ia sentir diferente.
Agora que passei para o outro lado (saí da parte teórica e me tornei uma "quase médica", uma interna), todas as situações desse seriado tem um significado diferente. Antes eu via, imaginava se aquilo um dia aconteceria comigo e hoje... ah, hoje... sou eu quem tenta passar um acesso venoso, fura o paciente várias vezes e não consegue, sou eu que tenho que acordar o residente porque não sei passar um cateter central que o paciente precisa, sou eu que levo bronca de enfermeira por "comer bola" ou (não) fazer algo que para ela é tão óbvio (como jogar um frasco de vidro inutilizado no lixo comum, ao invés do lixo para pérfuro-cortantes - óbvio!), sou eu quem esquece de colocar na prescrição o remédio que o residente pediu e insitiu tantas vezes, que acaba fazendo procedimentos que meus colegas queriam (mesmo o paciente sendo meu) e eles ficam bravos (mas depois sempre entendem e aceitam)...
É tudo tão parecido... tantas situações que vivo e que saio me sentindo uma retardada, uma idiota, uma burra, uma malvada... e que estão retratadas num seriado de tv de forma tão parecida. Me faz sentir menos burra. Se está num seriado é porque todos passam por isso para aprender.
Todos aqueles médicos fodões que fazem pose de "sempre soube tudo e você é um idiota", que falam conosco como se tudo fosse tão óbvio, que nos exigem tanto... eles já passaram por isso, eles já foram internos idiotas que não sabiam a topografia do canal inguinal ou a anatomia do pescoço para passar um cateter central, ou mesmo como manter uma criança parada para fazer um exame especular em seu ouvido.
Pensar nisso me faz sentir melhor, tão mais tranquila, tão menos estúpida. Assistir a esse seriado me faz sentir parte do mundo e me dá forças para continuar. Me dá vontade de estudar, de prestar mais atenção, de conversar mais com os mais velhos sobre minhas dificuldades e angústias. Afinal, eles já passaram por isso.

Na faculdade de Medicina, o clima fake que tenta se manter é que todo mundo sabe muito, que nasceram sabendo, que ninguém nunca erra, que todo mundo tem muito talento para aquilo... que ninguém sofre, que ninguém dorme, faz cocô... que ninguém ama.

Com certeza, Meredith, há uma razão para eles fazerem tudo tão difícil de propósito. Estamos lidando com vidas, com pessoas cheia de histórias, angústias, medos, dores, vontades, sonhos. O paciente não é uma prova prática diária, na qual você precisa ser aprovado para passar para o próximo estágio. Às vezes, é assim que a gente os enxerga, inconscientemente. Exigem tanto da gente em conhecimento, em postura, em mostrar que sabe tudo, que esquecemos que estamos lidando com pessoas... pessoas exatamente iguais a nós.

A dificuldade da Medicina, o maior aprendizado que a gente tem que adquirir (que eu tenho que adquirir), apesar de todas as dificuldades, das angústias, da falta de tempo, da vontade de fazer xixi, do cansaço, da fome, da insegurança... é conseguir atender bem o paciente, entendê-lo e ajudá-lo, unindo nosso conhecimento com nossa percepção e nosso sentimento.
Meu maior desafio nesse internato, é aprender a evoluir um paciente bem, realmente cuidar dele, apesar de saber que daqui a pouco tem visita com o assistente fodão e que ele vai me perguntar detalhes que eu não vou saber responder, que ele vai me humilhar, que ele vai me massacrar. Entender que não adianta ficar com a cara no livro tentando prever quais serão as perguntas que eu vou errar, que é muito mais válido sentar ao lado do paciente e entender sua história e descobrir quais são seus medos e seus sonhos, saber o que o está incomodando mais e tentar ajudá-lo.
A matéria será aprendida de qualquer forma. Conhecimento é essencial, mas, se formos analisar profundamente, veremos que é o mais fácil de se adquirir.