sábado, 10 de maio de 2008

Perdi um paciente hoje. Ele morreu nas minhas mãos. Literalmente.

Cheguei à enfermaria hoje cedo. Hoje sábado.
Não havia nenhum residente, nenhum médico, apenas as enfermeiras, eu e meu colega de panela.
Assim que entramos, a enfermeira nos chamou e disse que a paciente que veio da UTI ontem estava dispineica, que precisávamos avaliá-la logo porque ela não estava bem. Entramos no quarto, começamos a examiná-la e a enfermeira começou a gritar do corredor: "Doutores, doutores, ajuda aqui."
Saimos correndo, cena de filme mesmo.
Entramos no quarto de outro paciente, ele estava em parada. A enfermeira nos contou que ele estava em pé minutos antes, disse que não estava se sentindo bem, mas estava andando. Ela olhou para ele e viu que estava cianótico, pediu que ele se deitasse e alguns segundos depois ele estava vomitando, desacordado.
Chegamos nesse momento.

Eu simplesmente fiquei em choque, assustada, sem saber o que fazer. Tipo a Meredith no 1º episódio de Grey's. Meu colega, mais esperto e com mais experiência começou a fazer massagem cardíaca. Ele sabia o que fazer, já tinha visto e vivido situações semelhantes e simulações - ele fez curso de suporte avançado e já deu diversos plantões no PS da cirurgia durante a faculdade - simplesmente porque ele gosta dessas coisas de salvar vidas em situações de emergência).
Eu, com espírito de pediatra/puericultura, sempre fugi de coisas assim. Não gosto, não funciono.
Mas sou quase médica. Tenho que saber. E sei. Na teoria.

Quando ele começou a massagem cardíaca e passou a liderar a "equipe", eu acordei do meu choque e passei a ajudá-lo. Ambuzando, revezando na massagem, pedindo as drogas (que só poderíamos ministrar quando chegasse um médico formado).
Um residente apareceu, mandou aplicar as drogas que já estavam à mão, continuou a monitorização e depois ficou lá assistindo eu e meu colega tocando a parada, tentando salvar a vida do senhorzinho. Chegou um outro residente, os dois começaram a conversar sobre plantões e tal... e nós lá ambuzando fazendo massagem...
Foda. Foda. Foda.

Passados 40 minutos, não tinha mais o que fazer. Paramos e o senhorzinho se foi.
Sem nem ter tido tempo de respirar, corri para ver a senhora que estava com falta de ar. Eu não sabia o que fazer. Examinei, achei que podia ser edema pulmonar, mas chamei o residente para avaliar sem uma sugestão de conduta. Meu cérebro mal funcionava.
Poucos minutos depois, minha paciente me vendo no corredor (eu estava esperando o residente terminar a avaliação da outra para podermos discutir) veio perguntar se eu tinha novidades para ela. Eu, na maior inocência, disse que ainda não tínhamos visto o resultado de exame que ela fez porque no dia anterior ficamos o dia todo em cirurgia (saímos era 19h30 e fui direto para casa). Pra quê??? Como sou idiota!!!
Na hora, ela fez aquela cara de "essa criancinha vestida de médica é uma inútil mesmo" virou para mim e disse que ela já tinha visto o resultado de exame e que os médicos tinham dito que estava alterado sim. O que ela queria saber é o que eles iam fazer com ela. Eu tentei me desculpar, expliquei que eu tinha ficado em cirurgia e não sabia disso e que eu iria conversar com a residente em seguida.
Merda gigante. Essa cena aconteceu na frente de 4 outros pacientes que passaram a me tratar como criança.
Nessa altura do campeonato, já eram uma 8h30 (eu tinha chegado lá às 6h30), não tinha evoluído nenhum paciente nem prescrito (em geral tudo deve estar pronto até às 8h). Saí correndo, fui vendo os paciente, prescrevendo, resolvendo os pepinos. E, para continuar bem esse maravilhoso dia, a maioria dos pacientes tinha uma queixa nova importante (um tinha tido uma dor torácica de forte intensidade à noite, outro tinha começado a desenvolver uma lesão sacral que parecia uma escara, outro com falta de ar, a outra com dor abdominal e parada de eliminação de flatos...). Caraca! Eu nunca imaginei que ia passar por algo assim.

Os médicos mais velhos chegaram (nem vi quando porque estava tão ocupada)... discutimos os casos, passei os problemas... até que um deles virou e disse "ouvi dizer que você tocou uma parada hoje... você tá bem?". Ele pôs a mão no meu ombro, me olhou e respondi "não, não estou". Ele simplesmente virou e mudou de assunto. Disse que era assim mesmo e me mandou ir até a recuperação pós anestésica avaliar um paciente que não tinha voltado ontem após a cirurgia (aquele que ficamos até às 19h30).
Depois disso ainda fiz um milhão de coisas, vi exames, colhi, mudei prescrições, tomei broncas, respondi a um interrogatório de conhecimento (óbvio que eu errei 90%).
Umas 12h, eu louca para ir embora (num fim de semana normal a gente costuma sair umas 9h-10h), a residente me pediu ajuda para um procedimento. Fui lá, ajudei, demorou horrores. Quando terminou, todos saíram da sala de procedimentos e eu fiquei responsável por levar a paciente de volta para o quarto. Porém, ela estava nauseada e pediu que eu esperasse até ela melhorar um pouco. Enquanto isso, ela pediu que eu fosse até o quarto dela e retirasse seu almoço se ele já tivesse chegado porque ela não queria sentir o cheiro, se sentisse vomitaria. Fui lá, pedi para a enfermeira tirar a bandeja e, quando estava voltando para buscar a paciente, alguém veio me pedir ajuda para alguma coisa simples. Fui, ajudei e... simplesmente esqueci que tinha deixado a paciente na sala de procedimento. Esqueci.
Perguntei para a residente se eu podia ir embora porque ainda ia viajar em seguida, ela disse que já estava tudo mais ou menos encaminhado e que ela terminaria sem problemas. Fui lembrar da paciente quando estava no ônibus, quase chegando ao meu destino. Imperdoável. Vergonhoso. Certamente alguém passaria por lá e veria ela (fica num lugar exposto onde sempre passa gente). Mas eu era a responsável, eu tinha que ter voltado lá, não podia ter esquecido.

Enfim. Foi tudo horrível hoje.
Não posso dizer que não aprendi. Aprendi muito. Pra vida inteira.
Mas foi péssimo. Estou me sentindo um lixo, podre, estragada. Uma péssima aluna, uma médica desprezível, uma profissional medíocre. Vendo como meu colega atende os pacientes dele e todo seu interesse e conhecimento, me sinto pior ainda. Como posso querer ser médica se não tenho capacidade intelectual, nem manual e muito menos equilíbrio emocional para um dia desses??? Como pude escolher essa profissão e como sobrevivo a tanta pressão, cobrança, frustração, incapacidade???

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