terça-feira, 27 de maio de 2008

Dúvidas que podem mudar uma vida... ou várias...

Entrei na cirurgia da minha paciente hoje de manhã. Quando cheguei, já tinha começado. Ela estava lá com a barriga aberta e os cirurgiões tentando decidir o que fariam com alguns achados inesperados.
Pensei muito nessa paciente nesses dias. Ela é uma senhorinha de 80 anos, com algumas comorbidades meio sérias mas com uma doença que seria de fácil correção. Ela estava muito em dúvida se deveria operar ou não, ficou com medo de morrer (claro! todo mundo que vai ser submetido a uma cirurgia tem medo), medo de piorar sua vida após, de ter uma recuperação muito difícil.

Um dia vinha um cirurgião e dizia pra ela que ela precisava operar, que o risco de ela ficar com aquela doença e ter complicações sérias e ter que operar de emergência era alto, que seria pior se ela não operasse.
Outro dia vinha outro e dizia que o risco da cirurgia era muito maior, que ela passaria muito tempo na UTI depois, que era melhor ela ir pra casa.
E depois aparecia um outro e sugeria que ela fosse pra casa pensar, conversasse com os médicos dela e depois voltasse se decidisse operar. Que a escolha era dela.
Cada dia vinha um e falava uma coisa diferente... Isso quando não vinham os 3 nos mesmo dia (um de cada vez, claro) e falavam essas coisas incoerentes, deixando a cabeça da mulher girando...

No meio dessa confusão, eu, simples interna, que a acompanhava diariamente, explicava o melhor que eu sabia sobre a cirurgia, os riscos e a recuperação, estimulava ela a conversar com médicos que a conheciam a mais tempo, que já a acompanhava antes, mas ficava em cima do muro quando ela perguntava minha opinião pessoal (eu achava que ela devia operar sim, mas claro que não iria dizer isso porque tenho ínfimos conhecimentos para dar uma opinião tão importante na vida, ou morte, de alguém - mas acho que no fundo, ela acabava percebendo o que eu pensava a respeito).

Enfim, ela decidiu fazer a cirurgia, acreditando (ela, eu e os médicos) que seria o melhor para ela. Mas... mas... mas ao entrar em campo hoje, ao ver a barriga dela aberta, tudo que a gente encontrou lá dentro e tudo que tivemos que fazer... Me arrependi amargamente da minha opinião. Não conseguia esquecer a cara dela de medo do dia anterior... não conseguia parar de pensar em como seria a recuperação dela (com certeza muito pior do que imaginei). Foi muito duro.
Acho que ela vai sair dessa. Vai demorar um pouco para se recuperar mas vai conseguir. Mas fico pensando... será mesmo que ela deveria ter operado? Como eu podia ter uma opinião formada sobre isso antes? Como a gente pode interferir tanto? Como a gente pode causar tal mudança na vida de uma pessoa? Tal risco? Como a gente pode brincar de Deus desse jeito, decidindo o que é pior ou melhor, o que é mais ou menos arriscado?

O pior é que acho que os cirurgiões não tem muita noção do tamanho disso. Acho que no dia-a-dia do trabalho (que é muito duro, muito estressante, muito cansativo) eles se esquecem do quanto estão interferindo na vida da pessoa (pelo menos, os cirurgiões mais novos, com os quais tenho contato). Preocupante...

Paralelamente a todas essas emoções de hoje, voltei a pensar na possibilidade de fazer cirurgia. Meu maior argumento para não fazer, além de ter essa responsabilidade gigantesca nas mãos, é porque acho que essa especialidade vai despertar o que de pior há em mim (meu lado egocêntrica, que quer aparecer, maldosa com os mais novos/"fracos", brincar de Deus - características que eu sei que existem em mim e com as quais tento lidar para ser uma pessoa boa). Além disso, penso na vida que os cirurgiões levam que de qualidade (tempo, família) não tem nada...
Mas comecei a pensar que posso lutar contra essas coisas, principalmente contra esses sentimentos ruins. Olha só: eu poderia ser cirurgiã pediátrica (porque a pediatria corre no meu sangue e não há como negar isso), trabalhar duro para melhorar o serviço do hospital (que atualmente é administrado por um troglodita horroroso). Poderia mudar o que tem de ruim, passar a fazer maior contato entre a clínica e a cirurgia na pediatria, tentar melhorar o ambiente de lá, a graduação... nossa! muitas coisas para fazer, mudar, reconstruir... Muitas idéias.

Mas para isso eu teria que fortalecer muito minha personalidade insegura, teria que melhorar minha forma de me relacionar com as pessoas, criar um bloqueio para receber patadas sem me importar etc etc etc. Não sei se consigo...

Tem uma residente de primeiro ano lá na faculdade que me inspira horrores. A conheci no pronto socorro, no meio de uma emergência grave... mulher alta, linda, cabelos perfeitos, toda maquiada, salto alto, roupa impecável. Ok ok. Bastante inadequada para uma sala de emergência. Mas ela era demais. Sabia muuuuito, tocou tudo com uma perfeição inacreditável para uma R1, discutiu com os homens mais velhos quando tentaram tomar uma conduta com a qual ela não concordava. Show!!! A mulher simplesmente brilha.
E é cirurgiã. Alegre. Espontânea. Meio infantil. Inadequada. Mas totalmente segura de si. Totalmente brilhante!
Teve uma hora, discutinho um caso, que ela falou para o chefe que tal coisa tinha 10 cm. Ele discordou totalmente. Disse que tinha uns 20cm. E ela: "imagina! claro que não! é 10cm. 10cm igual a minha régua dos ursinhos carinhosos!!!". Esse argumento ele nem tinha como contestar. A discussão acabou por aí e ele aceitou que tinha 10cm.

Será que consigo?
Será que minha paciente vai conseguir?

Nenhum comentário: