Passei essa semana acompanhando o trabalho das equipes de saúde de um serviço de Atenção Primária. Deixo aqui relata essa incrível experiência.
15/09/08 - Segunda-feira
Cheguei ao serviço, hiper tímida como sempre e conheci a tal da médica maluquete que falara comigo ao telefone nas semanas anteriores.
Fui colocada para acompanhar a equipe verde. A médica estava de licença e não havia como substituí-la, portanto, quem liderava era a enfermeira. A garota de vinte e poucos anos tinha responsabilidades monstras sobre suas costas mas não conseguia resolver diversos problemas simples. Apesar de saber o que e como fazer, muitas vezes as outras pessoas envolvidas nem sequer ouviam o que ela tinha para dizer só diziam "quero um médico". Complicadíssimo. Mas até que a garota se saía bem.
No final da manhã, fomos para o grupo de dor. Era o primeiro dia daquele grupo que era baseado no tratamento de dor através de shiastu. Uma maravilha!!! Fizemos relaxamento, massagem uns nos outros. Foi demais!
Almocei num bar sujo, cuja comida me custou míseros R$3,50.
À tarde, fui com os residentes ao grupo de reeducação alimentar. Eram umas 10 senhoras tentando emagrecer. Recebiam orientações, trocavam experiências. Foi interessante, mas o que mais me chamou atenção foi o envolvimento dos médicos naquele grupo. Eles estavam tão envolvidos, tão envolvido, que já não conseguiam mais olhar de fora, não conseguiam perceber como algumas senhoras burlavam o esquema, o que estavam fazendo de errado. E, consequentemente, não conseguiam ajudá-las sempre.
Depois, fui para um outro grupo acompanhar consultas de enfermagem. Essas eram consultas principalmente de gestantes e puericultura que a enfermeira fazia intercalada com consultas médicas desses pacientes, mais para verificação de sinais vitais/ crescimento, orientações e identificação de problemas. A enfermeira que estava atendendo era muuuuito engraçada. Falava gírias da comunidade, xingava, brigava. Se fazia entender muito bem! Achei fantástico conhecer aquela figura.
16/09/08 - Terça-feira
Pela manhã fomos para uma aula teória (discussão de caso de uma família com problemas) e discussão sobre SUS. As pessoas que se especializam em Medicina de Família lá são muito característica. Em geral, ativos politicamente, contestadores. Foram discussões muito ricas. Falamos sobre as dificuldades de incluir esse assunto na Graduação, a diferença entre os postos dessa região e do resto do país, um pouco da história de implantação do PSF.
À tarde, fiz visita domiciliar com aquela enfermeira figura que conheci no dia anterior. Ao chegar na casa, a puérpera ia começar a dar banho em seu bebê. Dear God, quanta dificuldade... Olhando de fora parece fácil, as orientações teóricas são aparentemente simples, mas vai lá tentar fazer pra ver como é... Simplesmente impossível seguir todas as orientações e cuidados. Principalmente se a coitada da mãe estiver sozinha para dar o banho.
Depois, vimos e orientamos amamentação. Interessantíssimo ver que na prática as orientações teóricas também mudam um pouco. E falamos de como incluir na nova realidade a filha mais velha, de 6 anos.
17/09/08 - Quarta-feira
Pela manhã, teríamos uma discussão sobre o posto e a região. Na verdade, era um grupo para que os moradores da região que tivessem interessados, pudessem conhecer sobre o sistema de saúde e sobre o posto especificamente, seu funcionamento, suas atribuições. Mas como tinha sido pouco divulgado, não apareceu ninguém e acabos por ser realocados. Fui acompanhar consultas médicas que a residente estava fazendo.
Aquela garota nasceu para fazer aquilo. Tinha uma paciência invejável e uma sensibilidade rara. Gostei muito. E para terminar a manhã, atendemos uma senhorinha com fortes dores crônicas que seria submetida a sua primeira sessão de acupuntura.
À tarde, tivemos aulas teóricas sobre processo de aprendizagem de escrita da criança e sobre tabagismo.
Lá reencontrei um dos meus mestres na faculdade. Meu cabeludo favorito. Agora como residente, mais maduro, mais seguro. Conversamos bastante como há muito não fazíamos e entendi como é estar no lugar certo, seguir a carreira certa. Admirável esse rapaz.
18/09/06 - Quinta-feira
Nossa!!! Essa manhã foi inesquecível. Impressionante! Eu deveria ter ido fazer visitas domiciliares, mas por problemas da equipe, acabou não sendo possível, então optei por acompanhar as consultas médicas de uma já Assistente (que trabalha lá há uns 4-5 anos).
Quando entre, ainda em reunião, a médica conversava com as agentes de saúde sobre um problema sério que a comunidade estava enfrentando. Semana passada, uma menina foi ao AMA da região com queixa de dor ao urinar e prurido vaginal. Ao examiná-la, o médico do local suspeitou que a menina sofrera abuso sexual. Como manda a lei ele acionou as assistentes sociais e fez todos os trâmites cabíveis. A família inteira teve que ir depor, fazer exames no IML e tal. Enfim, foram investigar o caso. O problema é que na comunidade (assim como em tantas outras), se uma criança sofre abuso sexual, o cara que praticou o ato é assassinado. Simples assim. Ninguém espera o cara ser preso nem julgado nem nada. Matam mesmo. Assim, tendo acontecido esse problema, o pai da criança estava ameaçado de morte. Só que a conclusão inicial dos exames foi de que a menina não sofrera abuso e que o pai não tinha feito nada com ela. O grande problema é que ele precisava provar isso antes que o matassem e nada garantia que iam esperar ele receber a papelada. Enfim, o cara, pai de família, inocente, poderia morrer a qualquer momento por uma atitude impulsiva de um médico (não estou dizendo que ele estava errado em denunciar - ele precisava proteger a criança - mas ele poderia ter feito isso com mais cautela, podia ter procurado os médicos do posto para discutir o caso, já que eles acompanham aquela família mais de perto e há mais tempo). Tenho certeza que se o médico conhecesse a realidade daquele lugar, se ele soubesse que colocaria em risco a vida de um inocente, ele teria feito tudo de um outro jeito.
Ao começar a atender os paciente, a primeira que entrou era uma mulher grandona, meio "mano", que sofria de síndrome do pânico. Aquele mulherão, chorava feito um bebê, morria de medo de sair de casa. Vivia uma realidade muito difícil com o marido preso, dois filhos pequenos. Mas era uma mulher impressionante. Totalmente diferente de qualquer pessoa que eu tenha conhecido. Me apresentou uma realidade de vida que eu nunca imaginara que poderia existir. Depois a médica me contou que é ela a pessoa que mais passa informações para a equipe de como está a comunidade, o que tem acontecido, qual a realidade do momento.
A segunda, era uma mulher doce, muito simples. Passou a consulta meio inquieta, parecia que queria contar algo mas estava sem coragem. Com toda a sensibilidade a médica conseguiu que a mulher se abrisse. Ela não sabia ler e escrever e queria um encaminhamento para um psicólogo porque diziam para ela que ela era muito burro e tinha problema mental. Ela também chorou. Conversando, descobrimos que durante a vida difícil que levara, ela nunca teve oportunidade de aprender. Explicamos que não era uma questão de ser burra, mas sim de aprendizagem. Ela mostrou-se muito animada para aprender e pedimos para que voltasse à tarde para que a apresentássemos a um professor da comunidade que dava aulas gratuitas para adultos. Mudamos a vida dela.
A terceira entrou de óculos escuros. Disse que precisava de um atestado para não ir ao trabalho. Conversando, ela nos contou que apanhou da irmã. Quando tirou o óculos pudemos ver seu rosto todo arranhado principalmente próximo aos olhos, inchado, roxo. Chocante. Uma história bem esquisita, mas aparentemente comum ali.
Por último vimos um senhor com dores crônicas. Grandão. Tinha um diagnóstico de esquizofrenia, mas ninguém sabia direito como nem por que. Aprendi que não se precisa tentar resolver todos os problemas de uma vez. Nos focamos em um assunto que consideramos o principal e marcamos retorno para, com o tempo, ir tratando dos outros problemas, abordando as outras questões. Algo que não é possível num hospital terciário, mas totalmente pertinente na atenção primária.
Após todas essas consultas, não aguentei e perguntei para médica como ela conseguia ver e ouvir todas aquelas coisas e conseguir dormir à noite, não levar esses problemas para casa. Ela me respondeu: muita terapia. Ela falou que essa é uma das coisas mais difíceis ali porque você se envolve demais com a pessoa e com sua família inteira, elas passam a fazer parte da sua vida. Mas você tem que aprender a deixar os problemas ali. Ela faz tudo que pode nos horários de trabalho para poder ir para casa com sensação de dever cumprido, sem arrastar tantas coisas no caminho. Nem sempre é possível, mas com o tempo vai se aprimorando.
À tarde, fui para faculdade ter aulas e fazer prova. Ao chegar na enfermaria, fiquei perplexa com a cara que meus colegas estavam. Todos cansados, estressados, chateados. Clima péssimo. Deu até medo. Fiquei me questionando novamente se aquele grupo é bom para mim. Eles simplesmente não sabem como burlar o mau-humor, as coisas ruins, eles simplesmente encorporam e retransmitem coisas ruins aos 4 ventos. Horrível. Queria conviver com pessoas menos sérias, que levassem menos ao pé da letra as ordens e arbitrariedade dos nossos superiores, que soubessem apoiar um ao outro, dar suporte nas situações difíceis. Sei lá. São todos egoístas centrados em si mesmo. É muito triste... (entre o "todos" retiro 2 deles que são menos "nerds")
Mas, falando da prova, fiquei meio assustada com ela. Eu simplesmente esqueci da existência de algumas doenças altamente prevalentes. Vi uma foto de uma lesão de pele e não fazia idéia do que era. Em algum lugar da minha mente eu sabia que podia ser causada por Staphylo ou Strepto, mas não conseguia fazer a informação fazer sentido. Depois, vendo o gabarito, descobri que era Impetigo. Caraca!!! Eu esqueci que existe algo tão comum no mundo. Simplesmente esqueci. Assim como a questão de pancreatite. Nem sequer lembrei que existia essa doença. ZUADO! Fiquei com medo da hora em que for atender, ver essas coisas e esquecer informações importantes assim. Isso é inadmissível!
19/09/08 - Sexta-feira
Pela manhã, novamente acompanhei consultas.
Por último atendemos um lindo menino de 12 anos. Super educado, inteligente, bonzinho, responsável. Estávamos discutindo o caso com o psiquiatra (que passa lá uma vez por mês para dar uma consultoria). O menino tinha diagnóstico de TDAH, tomava remédio e tal. A escola, considerava ele um retardado, dizia que ele não conseguia aprender. A mãe dizia que ele era muito burro. Conversando com o menino, claramente ele não tinha TDAH (era super calmo, prestava atenção, estava tranquilo). Ele tinha bastante dificuldade para ler e escrever, mas de burro não tinha nada (aprendera a montar bicicletas sozinho, adorava mecânica e computação). A impressão clara que fiquei é que ele é mais uma vítima da péssima qualidade de ensino no Brasil. O menino tinha muita vontade de aprender, mas não tinha ninguém para ensiná-lo. Os pais trabalhavam muito, a escola o tratava como doente. Ele claramente tinha dificuldades para aprender, mas se encontrasse alguém com paciência e disponibilidade, ele conseguiria chegar longe.
Uma pena saber que dificilmente ele vai encontrar alguém. Pelo contrário, está cercado de gente que o chamam de burro ou doente mental, que dizem que ele nunca vai conseguir fazer uma faculdade, nunca vai vencer na vida. Uma enorme pena!
À tarde, voltei para meu hospital terciário para atender no ambulatório de geriatria. Conheci um velhinho muito figura, super atlético. Queria ter metade da disposição dele. E no fim, fugi do ambulatório deixando um paciente sem atendimento. Já eram 16h e o paciente não tinha sido atendido ainda porque o idiota do meu colega não foi no ambulatório daquele dia e não mandou ninguém para substitui-lo. O mais justo é que os amigos dele de panela o cubrissem e não eu, ué?! Fui embora na maior cara dura e deixei o paciente lá para que eles atendessem.
E assim terminou minha semana atípica. Tão cheia de aprendizados, vivências, trocas. Saio dela uma pessoa melhor, uma profissional mais capacitada. Semana que vem, volto para meu antro de desgraças. Espero sobreviver...
Nenhum comentário:
Postar um comentário