terça-feira, 24 de junho de 2008

Já se passaram 4 dias. Faz 4 dias que saí do hospital, que entrei de férias. E não consigo esquecer, não consigo me desvincular, não consigo seguir em frente.
Minhas férias estão servindo para 2 coisas: estudar para o próximo estágio e conseguir digerir tudo que vivi nesse mês que se passou. Sozinha.
Infelizmente, nesse momento sou médica full time. 24 horas por dia. 7 dias por semana. Penso em Medicina todo tempo, sonho com isso, leio livros sobre isso, assisto seriados na tv e reportagens sobre médicos e suas vidas.
Não sei como uma pessoa pode suportar viver assim, mas enfim... estou feliz apesar de todas essa angústia que carrego.

Não consigo esquecer minha paciente M.R. Uma senhorinha muito simpática. Chegou para nós com diagnóstico de câncer, com muitas metástases. Precisava ser operada porque estava obstruída. Nos primeiros dias em que esteve lá, percebi que ela não tinha idéia de sua doença nem da gravidade. Ela me dizia que tinha uma infecção mas que iam fazer uma cirurgia e ela ficaria curada. Fui, aos poucos conversando com ela, tentando fazê-la entender o que era e o quão grave... Mas ela simplesmente se recusava. Apesar de em alguns momentos ela perguntas, ela querer saber, quando eu começava a contar, ela mudava de assunto, perguntava outra coisa qualquer. Com o tempo fomos conversando com a família, com ela, pedi acompanhamento psicológico e ficou assim. Saí de lá na sexta sem que ela entendesse sequer que eu não voltaria mais. Falei para ela que eu estava entrando em férias e que posteriormente ia para outro serviço e ela respondeu: "tá bom, dra. te vejo depois então, te vejo segunda-feira". Nem insisti muito. Acho que no fundo ela sabia tudo, ela entendia tudo, só não estava pronta para lidar com tudo de uma vez só. Ela queria fazer a cirurgia primeiro, sobreviver, melhorar para depois lidar com a idéia de que precisaria de quimio ou radio ou que não teria muito mais tempo... E provavelmente meu "abandono" no meio daquilo tudo não era algo que ajudaria. Fico pensando agora, como poderia tê-la ajudado melhor, como poderia ter conversado mais... se não poderia passar lá para vê-la essa semana.

Minha outra paciente chegou lá muito otimista, mas com muito medo. Ela não tem nenhuma doença grave e passaria por uma cirurgia eletiva pela qual ela esperava há 3 anos. Mas ela tinha muito medo porque da última vez que ela precisou de anestesia, teve complicações, ficou um tempo em coma e depois que acordou ficou sem mexer as pernas por alguns meses. O maior medo dela era que isso acontecesse novamente.
Desde o começo, fui conversando com ela, tentando entender o que tinha acontecido da outra vez, tentando fazê-la entender que essa cirurgia era diferente e que conhecendo os acontecimentos anteriores outros cuidados seriam tomados.
No dia da cirurgia dela, ela e a família estavam muito tensos. A filha dela, estava em desespero. Sentei, conversei com elas. Garanti a minha paciente que manteria a filha dela informada. Depois, acabei dando o número do meu celular, para que ela pudesse ir para sua casa e me ligasse mais tarde para saber como estava indo a cirurgia. Sei que isso foi um erro muito perigoso, mas não sabia como confortar aquela família. Foi o jeito mais simples que encontrei. Era o que eu gostaria que tivessem feito comigo, se fosse minha mãe.
A cirurgia foi bem, ela voltou para o quarto no mesmo dia. Ela estava evoluindo muito bem, apesar de uma tosse estranha que surgiu no 1ºPO.
No meu último dia lá, à tarde, quando estava me despedindo das pessoas, fui vê-la e fiquei sabendo que ela teve um TEP. Eu não podia acreditar nisso. Não conseguia... Ela estava bem, ela estava com profilaxia, tudo certinho de manhã. E, naquela hora em que fui me despedir, ela mal podia falar com tanta falta de ar, ela mal podia respirar... Fiquei enlouquecida. Questionei os residentes, disse que devia ser outra coisa, vi e revi todos os exames.
Agora fico aqui pensando se eu não deveria ter percebido antes. Fico me perguntando por que não examinei as pernas dela, a procura de uma TVP. Eu sei, minha cabeça sabe que isso não teria mudado nada. Ela provavelmente não tinha uma TVP. Nada que eu tivesse feito ou achado mudaria a evolução, mudaria o problema ou a conduta. Nada. Mas meu coração não sabe...
Queria passar lá para vê-la, para saber como ela está hoje, para explicar para a filha dela tudo que aconteceu...

Minha terceira pacientezinha... ah, como eu a adorava! Ela está lá desde meu primeiro dia. E continua lá após meu último... Não sei se a ajudei em alguma coisa, não sei se mudei seu dia-a-dia de alguma forma. Mas eu quis. E tentei. No começo eu fugia do filho dela a todo custo. Um cara mala, que enfernizava a vida de toda a equipe. Minha sorte é que ele não sabia que ela era minha responsabilidade e eu usava isso a meu favor, para me esquivar. Mas na última semana, resolvi enfrentar. Fui lá diretamente, enfrentei, me apresentei, conversei, respondi suas perguntas tentei ajudá-lo e fazer com que ele nos ajudasse também. Fiz ele entender o quanto a presença dele ali era importante para a recuperação da mãe dele. E isso mudou alguma coisa. Nos primeiros dias após essa conversa, ela teve uma melhora considerável. Ele passou a ficar mais tempo com ela, encheu menos o saco do resto da equipe, tentou efetivamente ajudar. Mas, como isso não é um conto de fadas, como eu sou uma simples interna sem experiência, logo ficou óbvio que o que eu falava para ele, ele ia para algum médico mais velho para confirmar a informação. E não foi necessário muito tempo para ele perceber que minhas informações não eram muito precisas, que o que eu condiserava melhora, não era considerado assim pelos outros médicos, que o que eu considerava uma evolução, eles consideravam estabilização. Fui perdendo toda a credibilidade e deixando de prestar esse papel de informante, já que não estava mais ajudando em nada para a recuperação da minha paciente.
Até que... até que uns médicos mais velhos, que passam por lá uma vez por semana apenas, foram vê-la e acharam que ela estava muito mal, que tinha piorado muito. E mandaram-na para a UTI. Eu e o R2 ficamos tão putos, tão putos.... PQP!!! Eu cuido da paciente de perto, passo para examiná-la no mínimo -NO MÍNIMO- 2 vezes por dia. E um cara que vem vê-la uma vez simplesmente desconsidera nossa opinião e manda ela para UTI, onde com certeza ela vai piorar porque lá ninguém vai tirá-la da cama para caminhar, ninguém vai se preocupar em alimentá-la nem nada assim. Onde simplesmente vão enfiar um monte de tubo nela e deixá-la lá, sendo cuidada por aparelhos e especialistas... até ela pegar uma infecção e morrer de vez.
Eu a via todos os dias, várias vezes por dia. Eu sei que ela piorava muito à noite, que ela sempre acordava muito cansada. Mal. Eu via o quanto ela melhorava de dia. Via sua saturação subir a 99 em ar ambiente, via seu rosto corado e sua animação.
Sim, eu deveria ter prestado mais atenção a esses eventos noturnos, deveria ter tentado mais mudanças (tentamos algumas mas não deram certo), deveríamos ter feito mais e melhor. Mas tive minhas limitações. Não consegui.
E agora ela está lá na UTI. Esperando o pior.
E eu estou aqui pensando nela, revendo meus erros. Sonho com ela toda noite. Simplesmente não consigo me livrar desses pensamentos, dessa angústia. Não consigo.

Por isso que dizem que a gente não pode se envolver com o paciente. Você perde sua vida, sua identidade. É por isso que os mais velhos são tão frios, são tão maus às vezes.
Não quero ser fria como eles, não quero ser má e não quero parar de me envolver porque acho que sou melhor médica quando me envolvo.
Mas também não quero continuar trazendo-os para minha casa, para minhas férias, para minhas noites de sono...

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