terça-feira, 1 de janeiro de 2008

[Crônica de Stella Florence]

Eu abri, sim, a porta

Por favor, tenha calma comigo. É difícil explicar como tudo aconteceu, foi repentino e ao mesmo tempo, perdi essa noção de que... o senhor sabe.
           Minha primeira lembrança sobre isso tudo é que eu abri a porta quando ele tocou a campainha. Como poderia adivinhar? Abri, abri sim, abri mesmo. Com prazer, inclusive. Abri a porta e convidei-o a entrar sem o menor receio, afinal ele era meu conhecido, meu amor, ele era... Ele entrou porque eu abri a porta: isso é certo.
           Logo de início não percebi que havia algo de estranho naquele homem, porque talvez a estranheza estivesse em mim, talvez ela esteja agora, aqui, atrás daquela porta preparando o bote. Mais um...
           Os fatos? Ah, os fatos, claro.
          Sua primeira ação dentro da casa foi, ao me dar um beijo, derrubar o abajur da sala o chão, espatifando-o em mil pedaços. A louça colorida esmigalhada por todo carpete de madeira, graças a um gesto dele, ao contrário de me sobressaltar, me causou uma impressão tão linda... Pareciam, os pedacinhos de vidro, minirrefletores da luz azulada da TV brilhando para mim. Logo em seguida, enquanto ele me acariciava os cabelos dizendo o quanto me amava e sentia saudades, se encostou na mesa de vidro e pumba: lá se foi ela para o chão. Novo tilintar, novos pedaços translúcidos: minha sala ia ficando cada vez mais colorida, mais parecida conosco... Não dei importância, não a importância devida, afinal um abajur pode ser um acidente, mas uma mesa, ora, ora, não venha me dizer cheio de ironia que não percebi: é claro que notei, afinal era uma m-e-s-a, mas era ele, entende? Como eu poderia acreditar?
           Eu havia chegado do trabalho há alguns minutos e antes da campainha soar tivera tempo apenas de acender as luzes do apartamento, ligar a TV e destravar as janelas, então, depois de abrir a porta, fui tomar banho enquanto ele preparava algo para nós comermos.
           Lógico que ele conhecia bem minha casa, sabia onde encontrar tudo, desde café a toalhas, sabia até mesmo... ele não era um desconhecido, por Deus, o senhor ainda não entendeu isso?
           Quando saí do banho, vesti um roupão e, passando descalça pela sala, sofri os primeiros cortes no pé com os cacos da mesa mixados aos do abajur. Entretanto, eram tão lindos os cortes, porque eram produto de uma ação dele e... não havia importância. Os cortes. Nenhuma importância.
           Continuei caminhando em direção à cozinha e no corredor senti um forte cheiro de coisa queimada. Pela porta entreaberta pude vê-lo mexendo nas costas do microondas, donde fagulhas brancas pulavam como gafanhotos. Quando me viu, soltou um daqueles seus sorrisos que nem mesmo uma foto poderia capturar e disse: "Amor, acho que estraguei seu microondas...", "Tudo bem, temos um fogão para quê? - respondi.
           Jantamos no terraço algum tempo depois, à luz de velas, pois todas as lâmpadas da sala estouraram - sabe-se lá a razão - após ele ter me carregado nos braços em direção ao sofá com aquele seu jeito tão peculiar; um sofá novinho em folha, o senhor sabe?, e no entanto frágil como um esqueleto de codorna: um dos pés não resistiu quando ele me jogou sobre o estofado. Ah, mas foi tão romântico! Depois do jantar fizemos amor no meu quarto; não podíamos estragar a obra de arte desenhada no chão da sala: cacos pequenos, médios, grandes, grossos, finos, de vidros transparentes, coloridos, foscos. É bem verdade que a cama, numa manobra mais impulsiva dele, quebrou; mas o estrado era velho, imagine que eu dormia naquela cama desde os catorze anos! Ele havia gravado uma fita com suas canções prediletas para nos embalar, porém não conseguimos escutá-la pois na intenção de aumentar o volume, o botão saiu na sua mão: depois disso apenas um zunido, nada mais.
           Pusemos o colchão sobre o tapete do quarto e eu, com sono, adormeci me sentindo segura a seu lado, contudo, nem meia hora depois, ruídos estranhos penetraram nos meus sonhos. Quando percebi que eles vinham de dentro de casa, levantei tão instintivamente que só me dei conta de que ele não estava comigo na cama improvisada quando empurrei a porta da cozinha. Parecia emperrada, achei esquisito...
           Apanhei-o com uma barra de ferro nas mãos. Não disse nada. Todas as coisas, grandes ou pequenas, comíveis ou intragáveis, descartáveis ou duradouras que havia dentro da minha cozinha - e o senhor pode imaginar a quantidade e variedade delas - estavam sendo sucateadas com tamanha fúria que, pela primeira vez, por um segundo, cheguei a não amá-lo. Mas essa sensação desapareceu assim que pude ver seus olhos: em meio à destruição, se conservavam tranquilizadores. O que poderia haver de mal em fazer o que quer que ele fizesse? Nada, senhor. Nada poderia. Não vindo daquele homem, com aquele olhar que só eu - mesmo que uma multidão estivesse ali naquele momento -, só eu poderia decifrar. Então, eu sorri e disse "venha comigo".
           Ele caminhou para mim, calmo, pacífico. Eu o enlacei no mesmo lençol em que me protegia do frio e pude sentir seu corpo coberto de suor e suas mãos rasgadas em filetes sangrentos. Deitei-o em minha cama, umedeci uma toalha de rosto, refresquei seu corpo em brasa, desinfetei as feridas cor de vinho tinto e as cobri com pomada cicatrizante. Ajoelhei aos seus pés e adormeci certa do seu bem-estar.
           Quando acordei, ele já estava vestido, em pé, na sala. Falou transtornado que precisávamos conversar. Eu me aproximei dele em passos curtos, sem perceber que mais, muitos mais cacos de vidro se alojaram na sola dos meus pés descalços, alguns de forma profunda. Com um semblante impaciente e os punhos cerrados, ele disse que melhor seria acabar tudo. Minha reação foi normal, eu acho.
           Duvidei,
           chorei,
           implorei,
           e, finalmente, me convenci.
           A porta bateu. Não, não foi isso. Ele bateu a porta.
           Não conseguia enxergar direito tamanha a quantidade de lágrimas que brotavam dos meus olhos mas, mesmo assim, alcancei o boxe, abri o chuveiro e deixei sua água morna escorrer sobre mim. Ali, sentada no chão, cabeça coberta por braços desconexos, chorei exaustivamente. Apalpava as pernas de quando em quando, para ter certeza de que ainda estava viva, de que, apesar da inenarrável dor que comprimia meu peito, ainda estava, podia-se dizer, clinicamente viva. Depois de muito tempo, desliguei o chuveiro, tomei dois analgésicos, sentei-me no vaso sanitário e, com a ajuda anti-séptica das lágrimas abundantes, fui retirando um a um, os cacos que coalhavam meus pés, antes coloridos, brilhantes e iluminados como o chão da sala, agora cobertos por fissuras, algumas já infeccionadas, provocadas por diversos, em tamanho e espécie, cacos de vidro.
           Ao me dar conta de que não só todo o apartamento estava depredado, mas também meu carro, na garagem, fora reduzido a sucata, chamei a polícia. Ele poderia voltar, e como eu iria me defender? Comprando uma arma? Usando alarmes eletrônicos? Gritando por socorro? Numa cidade grande como esta, o senhor sabe, ninguém ouve.
           Como?
           Ah, sim.
           Sim, senhor.
           Fui eu quem abriu a porta.

[Retirada do livro "Por que os homens não cortam as unhas dos pés?" - 2000 - Editora Rocco]

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