segunda-feira, 3 de setembro de 2007

[Por não ter internet disponível o tempo todo, adquiri o hábito de escrever textos no word, esperando o momento de publicá-los aqui. Quase nunca publico... mas acho que esse vale a pena... só como um registro.]

O texto abaixo, escrevi quinta-feira passada, num momento de decepção...

30/08/07
Escolhi ser médica.
Profissão difícil que nos exige muito desde o início até o fim. Fim.
Lidar com o sofrimento das pessoas a todo momento, dos paciente, dos parentes, dos colegas... sofrimento muitas vezes escondido, mascarado... mas sempre existente.
Sinto diversas dificuldades em ser médica, sofro muito todos os dias e não tenho para onde extravasar esse sofrimento constante. Me sinto o tempo todo cansada fisica e emocionalmente.

Ontem fui dormir às 20h30. Só acordei hoje às 7h40, atrasada para aula, óbvio. No dia anterior tive o dia livre, só precisei atender uns pacientes no início da noite, mas fisicamente, pude descansar muito bem.
Por que então eu estava tão acabada ontem?
Descobri que o que me cansa mais na faculdade não é a rotina pesada, a falta de tempo para tudo, a quantidade de matéria para estudar, nem o contato com os pacientes, ter que lidar com o sofrimento, ver a morte tão de perto diariamente. Nada disso me cansa mais do que a convivência com meus colegas. Assistir às atrocidades que eles fazem uns com os outros, as tentativas de passar a perna, a incapacidade de dizer a verdade, de se mostrar, de admitir um sentimento, de admitir um erro... a incapacidaade de ajudar. Fico me perguntando como essas pessoas vão ser médicas se só conseguem olhar para o próprio umbigo... como elas querem ajudar os pacientes se elas não conseguem sequer perceber as dificuldades de seus próprios amigos?
Eu estava tão cansada ontem porque me meti numa "discussão" por e-mail. Porque colegas meus, egoístas demais, preocupados demais com seus próprios umbigos são incapazes de ver que uma outra colega nossa está precisando muuuuito de ajuda, está passando por problemas sérios. Pior que isso, eles sabem, ela está nos pedindo ajuda para um de seus problemas. Todos nós estamos plenamente conscientes de que é algo que vai afetá-la pelos próximos 2 anos, que esse sofrimento dela também será constante. Mas eles não são nem capazes de dizer "não vamos te ajudar". Pior que isso, ficam enrolando a menina, ignorando seus sinais de desespero, manipulando, fazendo intrigas... é tudo tão nojento!
Ouço argumentos do tipo: "não sou mãe de ninguém, não tenho que resolver o problema dos outros" (me pergunto como quer ser médica então?) ou "ela mereceu isso, está sofrendo porque ela é uma pessoa desagradável, mandona, mimada, arrogante". Sim, ela pode até ser tudo isso. Mas quem é que decide se ela merece sofrer ou não? Eu acho que o meu jeito de ser, poderia me levar facilmente a sofrer exatamente o que ela está sofrendo. Não me acho parecida com ela, mas tenho outras características igualmente difíceis de se lidar.

O que me faz defendê-la é simplesmente a possibilidade de ajudá-la. Eu posso ajudá-la. Eu posso abrir mão da minha dificuldade de lidar com pessoas para amenizar o sofrimento de uma pessoas que, apesar de não ser minha amiga, é minha colega de turma, é uma pessoa com bom coração. Se quero TRABALHAR com ela? Não sei. Não sei mesmo. Mas acho que não é isso que está em jogo nesse momento. O que está em questão é que posso TENTAR trabalhar com ela. E se não der certo, a gente pode conversar, podemos tentar mudar algumas coisas, tentar de outro jeito. Se eu estiver cansada demais dela, se eu (ou qualquer amigo meu) estiver com problemas com ela, ela vai ter que mudar de jeito ou mudar de grupo. Mas a tentativa... a tentativa de conviver com ela, de trabalhar com ela em algo que nós NUNCA fizemos antes... é isso que conta agora. O que conta agora é abrir mão de um medo para ajudar alguém. O risco de dar errado é grande? Sim, é. E daí? Quando der errado, a gente pensa em outras alternativas... quando der problema a gente resolve ele. É assim que se vive.

Mas tem gente que simplesmente não sabe viver. Tem pessoas que foram protegidas em suas cápsulas a vida inteira e têm um medo absurdo de uma ilusão que eles mesmos criaram em suas cabeças. Eu acho que passei por isso durante minha adolescência (que acabou não faz tanto tempo assim). Mas a gente amadurece e espera-se que pessoas de 20 e poucos anos não tenham atitudes tão covardes como as que ando presenciando... A pessoa simplesmente inventa que algo vai ser difícil, alimenta aquela ilusão e sai passando com seu trator em cima do sofrimento das pessoas sem nem olhar o que está fazendo. E, para "disfarçar" para elas próprias, tomam atitudes "politicamente corretas", usam argumentos bons, discutem com presença e atenção em detalhes irrelevantes...

Como a vida tem me mostrado nesses últimos anos, são sempre as pessoas boas que sofrem mais. Não acho essa menina perfeita. Pelo contrário, acho sim ela mimada, com dificuldade de convivência, mandona e muitas coisas mais. Mas não tenho dúvida de seu bom coração e de seu bom caráter. Ao contrário do de outras pessoas que estão sendo "protegidas", que são consideradas "amigas" e são sempre ajudadas, apesar das mentiras que contam, das maldades que fazem por aí.
Pessoas ruins, de péssimo caráter não passam pela situacão que essa menina está. Não passam porque sabem manipular, porque sempre encontram um idiota que os protege e que também gosta de se dar bem em cima dos outros. Pessoas sem caráter não ficam sozinhas. Nunca. Isso é um fato mais do que comprovado. Mas pessoas de bom coracão... essas sim, muitas vezes sobram... ou porque são sinceras demais, ou porque não entram em joguinhos, ou porque são simplesmente mimadas demais. Será que elas merecem punicão por isso?

Será que ficar sozinha vai ensiná-la a ser mais legal? Vai ensiná-la a trabalhar melhor? Pelo contrário... acho que estamos contribuindo não só para a tristeza de uma pessoa, como também estamos contribuindo para a continuação de um comportamento ruim que ninguém nunca vai se importar o suficiente para dizer o quanto ele é ruim. Por tudo isso e um pouco mais, está mais do que claro para mim que o melhor lugar para ela é conosco, com meu grupo. Porque eu estou disposta a aguentá-la, estou disposta a apontar seus erros, estou disposta a discutir com ela, a brigar, quebrar pau, estou disposta a ajudá-la a melhorara (como pessoa e como profissional) e estou aberta a que ela me ajude também, que ela aponte meus erros (porque meus colegas de grupo sei que seriam incapazes de me ajudar nesse quesito - são orientais demais para serem sinceros - sim, há preconceito nessa frase!!!). Acho que a presença dela entre nós só teria a acrescentar - acrescentar em sinceridade, em atitude, em amizade, em auto-conhecimento, em brigas e mal-estar também. (O que algumas das pessoas que vivem em suas cápsulas de iusão ainda não sabem é que o mal-estar, as brigas e as dificuldades de convivência vão sempre existir em altas doses, independente da presença dessa menina... e vão existir entre aqueles que elas menos esperam)